quinta-feira, 30 de junho de 2011

Gardel.


Ele aconteceu no começo de um janeiro acalorado e cheio de vermelhos quentes que pontuavam o céu poluído pesando sobre nossas cabeças. Lá dentro, sob luzes impiedosas que nos faziam menos bonitos, nos olhamos. Não éramos ordinários, nos reconhecíamos. Minha saia vermelha empurrava meus quadris em direção à camisa larga que ele vestia, o couro das minhas sandálias ansiava por pisar-lhe o peito branco de poucos pelos, minha boca ardia de vontade de ser engolida por seu sorriso preguiçoso e o mundo todo podia notar facilmente como eu sofria, agoniada, por não poder tocar-lhe imediatamente o bigode esquecido. Doíamos. Numa batalha de derrotados óbvios, nos olhávamos desejando que pudéssemos mergulhar para dentro do outro e desaparecer envoltos em sangue desconhecido.

Dançávamos um pesado tango argentino que já durava uma noite inteira: olhares lancinantes seguidos de sorrisos excitados e promissores, pequenas descobertas sobre nossos corpos ainda distantes, goles de cerveja que jamais aplacariam nossa sede verdadeira – jogos infernais. Ficávamos bêbados e desinibidos, mas continuávamos evitando qualquer aproximação ou outra forma de contato direto. Chegávamos a nos amar com a força de quem aprisionaria a carne viva do amado entre os dentes e, por isso, eram necessários grandes esforços para mantermos nossos pés imóveis e evitarmos que retalhássemos nossas roupas bem escolhidas e nos engolíssemos sem considerarmos a imundície do chão.

Não nos conhecíamos. Sofria de amores irremediáveis por um homem cuja boca eu nunca havia ouvido pronunciar palavra sequer, mas que eu afirmava ter voz grossa e fala pausada. Sabia que dirigia mal, que usava perfumes adocicados, que morava com os pais e que era comprometido. Ia sabendo as coisas todas conforme passava na frente dele e sentia seus olhos letais percorrendo minhas costas. Sentia meus poros se abrindo para receber pedaços dele: resquícios de um cheiro que fugia rápido, o som das unhas limpas tocando a garrafa, as vozes sufocantes das pessoas que vinham dizer coisas a ele. Um passo de cada vez, rodopios perigosos que embalavam dois pares de olhos numa fusão sem adversários. Mas fomos embora.

Dias e dias se passaram sem que eu conseguisse dormir antes de evocar a imagem daquele corpo desconhecido. Enquanto trabalhava, imaginava desfechos para o nosso tormento, perguntava a mim mesma se era real o que havia acontecido, sofria com a certeza de não poder repetir a tontura e o delírio encontrados naqueles olhos escuros em um janeiro acalorado. Esquecia de alimentar meus gatos, dirigia olhando para os lados e o procurava diariamente nos pedestres que atravessavam a rua sem pressa. Por último, quando não conseguia aplacar o desespero, voltava ao local do nosso encontro tentando reproduzir o que eu ainda não sabia ser verdade ou puro desequilíbrio de uma mente criativa demais e meio bêbada.

Semanas corriam. Por mais que eu me esforçasse, minha memória ingrata ia apagando os poucos vestígios dele que insistiam em sobreviver e, não muito tarde, esqueci-me dos cabelos mal tratados, da voz grossa, dos pés grandes, da roupa branca e da cor dos carros de seus amigos, da marca da cerveja que bebia, do sorriso inocente de sua provável namorada, do nome da rua, da dor insuportável que sentia quando o olhava e não conseguia alcançá-lo. Só não podia me esquecer dos olhos que me olhavam de baixo pra cima enquanto ele mantinha a cabeça meio baixa.

Depois de curada, acidentalmente nos encontramos e voltamos a dançar. Uma dança mais curta, sejamos sinceros, mas de igual intensidade. Ele mordia os lábios finos e esperava que eu me distraísse para, epifânico, passar por mim dezenas de vezes. Pude ter certeza de seu perfume. Não era adocicado. Na verdade, ele cheirava a um dia inteiro de trabalho, todo cheio de uma sinceridade que me fazia mais excitada que comovida. Desta vez, sabia que meu vestido justo o aprisionaria de forma infalível e estava pronta para apresentá-lo ao mundo ensurdecedor dos meus orgasmos. Era a única forma de poder sonhar em paz quando voltasse para casa, a única forma de evitar as olheiras que eu sabia que viriam, a única forma de não mergulhar pela segunda vez na obsessão adolescente que proibia meus amigos de se aproximarem. Mas, ele desapareceu.

Com meus olhos já sentindo falta dos dele, percorri todos os cantos a procurá-lo. Naquela noite, tive dores no pescoço e tomei dois comprimidos para me esquecer dos movimentos frenéticos que minha cabeça havia feito enquanto o caçava. Inútil. Só nos encontramos novamente quando ambos estávamos indo embora. Eu, sentindo um frio momentâneo de ar condicionado, caminhava de braços cruzados em direção ao carro sem disfarçar minha inconsolável decepção. Ele estava parado. Braços cruzados, também, armado do seu pior olhar e me fuzilando com uma crueldade da qual não consegui escapar intacta. Diminuí o ritmo dos meus passos e passei a me arrastar lentamente enquanto o sugava, enquanto implorava para que ele viesse colocar seus braços em minha cintura antes que eu caísse. Acho que estava vermelha. Meu corpo todo reconhecia o ardor do primeiro encontro e se negava a abrir a porta do carro enquanto ele não se aproximasse e eu não pudesse experimentar a exatidão dos seus beijos teatrais. Mas meu corpo não sabia de nada.

Finalmente, descobrimos nossos nomes. Em casa, diante da infalibilidade do mundo virtual, voltamos a nos olhar e flertávamos de longe. As pistas surgiam como que por milagre, milhares de coincidências se uniam para conspirar a favor de nosso talvez inevitável encontro físico. Morávamos na mesma cidade, frequentávamos os mesmos lugares, rezávamos para os mesmos deuses, ouvíamos as mesmas músicas, tínhamos os mesmos amigos, bebíamos as mesmas bebidas, gemíamos as mesmas sujeiras, idolatrávamos os mesmos ídolos, experimentávamos os mesmos porres e jamais nos tocávamos. Sequer admitíamos o incômodo que a existência do outro nos causava e, apesar da minha incontrolável necessidade de verbalizar tudo, continuávamos a nos ignorar. Até que nos encontramos num bar escuro.

Já num inverno que me obrigava a cobrir as pernas, notei-me indefesa ao sair do banheiro e vê-lo andando rumo a onde eu estava, cheio de dificuldades e entraves impostos por um mar de gente que não entendia a importância daquela caminhada. Enquanto eu tentava organizar meus cabelos volumosos, nossos olhos se beijaram cheios de uma nova urgência. Nossa comunhão começava ali: longe de qualquer quarto de motel, sem pretendermos exibir grandes extensões de pele, distantes de qualquer contato real com a umidade do outro, longe de experimentar meus ombros naquela boca de hálito quente. Sorrimos. E, às vezes, em meus momentos de maior delírio, chego a acreditar que talvez tenhamos ensaiado um olá seguido de um beijo desajeitado no rosto. Entretanto, não há grandes certezas.

A única certeza que carrego é a de que ficamos bêbados. Durante nosso último encontro, bebíamos com uma sede assustadora enquanto nos olhávamos e olhávamos e olhávamos e olhávamos e desejávamos que todas as pessoas que insistiam em interromper nossos momentos de contemplação morressem de forma dolorosa. Criávamos mecanismos para nos aproximarmos de forma sutil e nos demorávamos cada vez mais perdidos na imensidão hipnótica do olhar do outro. Não havia mundo. Não havia música, não havia frio, não havia tempo. Porém, meu corpo continuava não sabendo de nada.

Minhas pernas mal respondiam aos comandos do meu cérebro e, com dificuldade, me debrucei sobre o balcão para pedir mais uma cerveja. A última. Sentia seu cheiro me nocauteando pelo lado esquerdo e, apesar do medo que enfraquecia minha voz, fui capaz de olhá-lo de perto. Meus seios rijos quase chegavam a tocar-lhe o peito e aposto que era possível enxergá-lo no reflexo das lentes dos meus óculos de armação grossa. Olhei. Ele falou. Com a voz grave que eu sabia que teria, me perguntou como é que eu estava. Foi como se me conhecesse, foi como se sempre me perguntasse como as coisas andavam e como se eu, muito adulta, sempre respondesse que tudo ia bem para depois arruinar minha sobriedade ensaiada dizendo que gostava muito do cabelo dele. Foi como se ele sempre risse.

Mina Vieira.

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