quinta-feira, 2 de maio de 2013

Bombay Sapphire.


            Lívia se reposicionou na cama e terminou deitada de lado, olhos fechados encarando minha face já bem desperta. Com as duas mãos entre as pernas, aqueles seios pesados sempre se atropelavam e um tomava o outro num sufoco apaixonado sem pedido de socorro. Eu os estudava com frieza clínica, quase sem vontade de tocá-los, quando ela suspirou numa preguiça de sonhos bons e mexeu a boca sem articular palavra. Como na nossa primeira vez juntos, lembrei, um turbilhão de delicadeza. - Hoje eu não quero ir, disse-me em silêncio e com força, ávido de convencer a mim mesmo. Ela tocou minha canela com seu pezinho gelado e me penteou os pelos com o peito do pé. - Não vou mesmo, imaginei dizer, e fechei os olhos para encontrá-la em seu torpor sonolento.

            Não sei precisar por quanto tempo estive em paz, mas logo ouvi o rádio relógio nos atormentar seu bipe esganiçado. Meu primeiro pensamento foi a estranheza da minha possível permanência. Lívia desconfiava de qualquer tinta que ousasse respingar fora do papel da minha rotina, eu não podia ficar. Ela, por sinal, agora estava de costas me oferecendo seus quadris modestos e uma nuca rescendente à baunilha. Apertei os olhos e respirei muito fundo para me encher de novos pensamentos e expulsar de mim o peso dos 60 kg daquele corpo. Bati os dedos culpados no botão que calava o aparelho e acreditei em Deus ao levantar-me num único movimento preciso que quase sempre acordava minha esposa. Ele não existe. Lívia deve ter aberto os olhos imediatamente e, feroz, manipulou uma voz manhosa para executarmos o texto ensaiado à exaustão.

            - Por que você acorda tão cedo pra ir à academia? – ela despejou sem vacilar.
            - É o melhor horário, você sabe. – eu menti sem me doer.
            Silêncio.

            - E por que você não frequenta uma academia normal? – mansa, muito mansa.
            - Anormal é o seu ciúme, já disse que é uma academia só para homens.
            Silêncio.

            Eu apenas esperava a ferroada de seu golpe inevitável. Agora, cabia-me apenas disfarçar minha respiração acelerada e meus suores frios que quase escorriam das pontas dos dedos. Pode ser hoje. Hoje é um bom dia. Vai acontecer. Ela está procurando a forma mais cruel de me dizer que não acredita, eu sei.  Seu queixo miúdo tremelica e lhe é custoso adocicar a voz, eu posso notar. O golpe vem vindo. Meu sangue luta para fluir, meu estômago acorda de seu vazio dormente.

            - Então, por que você não frequenta uma academia normal?
            - A gente conversa quando eu chegar, pode ser? – eu sou sempre muito sóbrio.
            O golpe fica para amanhã.

            Sem responder, ela fechou os olhos e imagino que tenha voltado a dormir. Eu não quis ter certeza, apenas fugi às pressas temendo que meu gracioso dragão tivesse mais fogo a cuspir. Em segurança, tomei um banho lento e minucioso, demorando copiosamente na vastidão de partes que sobejavam enquanto eu fantasiava a aventura que estava por vir. Depois do banho, fiz pouco barulho enquanto vestia o figurino diário da minha mentira, beijei Lívia na testa numa mistura de ternura e medo, inalei seus cheios matinais sempre reconfortantes e encostei cuidadosamente a porta do quarto para não acordá-la. Talvez dormisse. Na garagem, liguei o rádio e senti o alívio da distância e das músicas que ouvia apenas quando estava sozinho. Eu seguiria de carro batucando no volante por vinte minutos rumo ao meu destino secreto: a antiga casa de meus pais.

            Quatro anos atrás, filho único, vi meu pai morrendo por último a sua morte já esperada de velho e herdei dele a casa vistosa na qual passei grande parte de minha adolescência. Lívia celebrou avidamente o acréscimo do novo imóvel e demonstrou sua conhecida praticidade sugerindo de imediato que eu o vendesse ou reformasse para o aluguel. Nós precisávamos de dinheiro, é claro. Lívia queria um filho e eu dizia sempre que agora não dá, meu amor, essas coisas custam muito caro. Agora, a casa solucionaria nosso impasse.

            Confesso, entretanto, que minha vontade de somar meus genes aos dela sempre foi tão poderosa quanto um saco de papel, e planos mais valiosos se multiplicavam em minha cabeça mal curada. Por eles, chorei à Lívia meu apego romântico a lembranças familiares que eu ia inventando conforme conversávamos. Contei histórias bonitas e pouco sinceras sobre os anos que passei na mansão. Mostrei fotos. Menti-lhe abrir o peito e confessei-lhe minhas saudades infantis, minha vontade de ser de novo cria de meus pais. Inventei um amor lancinante por aquela casa com a qual Lívia, que mulher mais dura, queria fazer dinheiro. Ninguém resistiria às minhas mentiras.

            Desde então, a casa segue intacta: um hospício onde bebo avidamente de minhas doenças.

            Hoje, passei em frente à sua varanda cheia de folhas secas e estacionei poucos metros adiante, debaixo de uma arvore pequena que disfarçava o carro tão bem quanto possível. Ao chegar, destranquei o portão baixo que dava acesso à porta da frente com um quase sorriso lutando em meu rosto bem barbeado. Com medo de ser visto, olhei para os dois lados e girei rapidamente a chave da porta até que ela se abrisse sem que fosse necessário tocar a maçaneta. A casa estava escura.

            Apesar de visitá-la diariamente, nunca me preocupei em limpá-la, untar de óleo as dobradiças, abrir as janelas ou trocar lâmpadas. Meu interesse sempre se limitou a um único cômodo: meu quarto. Faço questão de manter meu quarto de menino idêntico ao que me é vivo em algumas lembranças. O beliche que dividia com meu primo nas férias de julho permanece recostado na mesma parede cheia de capas de vinis que me viu perder a virgindade, alguns de meus livros continuam dispersos na estante de metal meio torta que suportou o peso dos autores que li na faculdade, uma cômoda de gavetas emperradas segue abrigando algumas peças de roupa e é fácil notar que os odores que impregnam as paredes não são obra do tempo, mas resquícios de suor do jovem que um dia fui.

            Ali, ao lado do antigo toca-discos de meu pai, construí a Amanda um altar. Apoiados em dois caixotes de feira dispostos lado a lado, objetos que invocavam seu fantasma mostravam-se atenciosamente organizados. Com cuidado de anjo, arranjei três de suas cartas extensas, confusas e apaixonadas. Eu as lia todos os dias numa voz que não precisava de olhos para saber como sair do peito, e experimentava um amor incompreensível provocado por folhas amareladas arrancadas de um caderno universitário. Logo atrás das cartas, mantinha também uma garrafa sempre cheia do gim potente que aprendi a beber e que bebíamos algumas vezes por semana enquanto deveríamos estar na sala de aula. Um de seus colares que cheiravam a metal barato e que levei para casa prometendo-lhe consertar o fecho. Dois bilhetes safados numa caligrafia de professora que eu gostava de apertar nas mãos como se pudesse fazê-los me penetrar à carne. Um CD de uma música só que eu não ousava ouvir novamente. Um caderno recém-começado cheio de apontamentos pouco relevantes sobre aulas que, novamente, não assistíamos. Um punhado de cravos-da-índia.

            Os elementos do meu altar singelo me ajudavam a não deixá-la ir embora. As palavras que lia todos os dias faziam soar em minha cabeça perturbada a melodia sensual dos encantos de Amanda. Seus cheiros boêmios ativavam milímetros do meu cérebro que de outra forma permaneceriam adormecidos pelo resto do dia. Seu cheiro de gim. Seu cheiro de cigarros. Seu cheiro de cravo-da-índia de quem não masca chicletes. E meu pau, sofredor primeiro dessa falta, respondia como há tempos havia deixado de responder às caças de minha esposa que sempre cheirava à baunilha.

            Hoje, depois de ler as três cartas, ajoelhei-me diante do altar, baixei minha bermuda de atleta e apertei meu pau já rígido enquanto atraía os odores de Amanda a meus pulmões. De olhos bem abertos, chamava meu gozo a conhecer a verdade de meu passado. Jamais fechava os olhos. Queria tanto uma foto, uma calcinha que me tapasse as narinas, uma gravação de sua voz que acordasse o quarteirão inteiro! Mas abri a garrafa de gim, apenas, e inalei forte o álcool perfumado que Amanda antes exalava entre as coxas. Pensei nas coxas finas e firmes, no sexo de pelos muito negros, no umbigo raso, no orifício que nunca me recebeu. Convulsionei num orgasmo animal que jogou minha testa rumo a um dos caixotes e por longos e plácidos minutos fumei um cigarro em agradecimento. Amanda era ainda a única responsável pela minha sanidade e também o maior dos meus arrependimentos.

            Gostaria de ter dado ouvidos aos que me alertaram que, onze anos depois, o cheiro dela ainda me viria à memória cada vez que eu tomasse um gole de gim-tônica com gelo. Ela bebia demais, afinal. Ainda no começo de nossos invejáveis vinte anos, bebia o bastante para que o cheiro enjoativo de gim me surpreendesse em seu suor, em seu pescoço marcado, em seus ombros ossudos, entre suas pernas, em seus cabelos castanhos e em toda a confusão do seu corpo. Uma bomba atômica promíscua embebida em Tanqueray gelado.

            Conheci minha bomba atômica durante o que ela gostava de chamar de um momento muito estranho da vida dela. Era o primeiro clichê que arriscava oralizar durante todas as nossas discussões violentas e bem articuladas ou diante de qualquer impasse no decorrer do que eu gostava de chamar de nosso relacionamento marginal. Quando não encerrava seus argumentos alegando a estranheza de seu momento, gostava de ameaçar me ferir irreversivelmente mesmo que passasse os dias se esforçando por ser gentil. 

            Não sou capaz de pintá-la, não há panegírico que lhe baste. À poesia de suas pernas abertas e do álcool que exalava, sempre calei. Cada uma de suas tantas manhas, cada manobra lubrificada à perfeição por sua saliva abundante, cada um de seus gemidos de êxtase terminados em urros boçais – seus caminhos deveriam ser detalhados num manual, cheguei a sugerir. Amanda era dessas mulheres que merecem um poema, um busto, um hino, um crime passional. Um altar.

            Ela foi a primeira mulher livre que tive em meus lençóis. Soberana, fazia piada da minha cama estreita e da amplitude da minha inexperiência enquanto segurava meu pau entre seus pés de unhas bem cuidadas. Foi quem me apresentou a ardência das palmas depois de um tapa desmedido e a sujeira da pele de quem dorme a noite inteira garantindo que os corpos não se afastem. Foi ela a quem chamei de puta e de quem recebi em troca o sorriso de quem ouve um eu te amo. Era de sua mocidade a mancha de sangue que perturbou meus lençóis por repetidos meses.

            Eu dizia que a amava todos os dias, saibam, e a amava com uma fúria que mal cabia nos meus poucos anos. Queria sequestrá-la, queria matar todos os seus familiares, queria fazê-la rainha num castelo que eu construiria roubando bancos, queria massagear aquele corpo até que meus dedos fossem penetrando sem dor a carne branca que o revestia. Eu queria que aquele vulcão me engolisse e me derretesse num único susto. Eu queria que ela me tragasse e que eu vivesse em seus pulmões enfumaçados até morrer todo preto. Eu queria lamber aqueles olhos e beber seu primeiro hálito todos os dias da minha vida.  Eu fiquei bêbado e disse a ela, eu sempre dizia. Ela me ouviu, paciente, e balançou negativamente a cabeça enquanto lacrimejava sem chorar.

            Foi só quando sentiu meu sêmen quente lhe ganhando os caminhos que presenciei seu choro desolado. Finalmente, enquanto meu gozo ainda pulsava, pude ver um amor tão febril quanto o meu pintando olheiras escuras naquele rosto hipnotizante. Ela não disse nada. Apesar das lágrimas, continuou me pisoteando com os seus nãos mais improváveis, com os seus nados magistrais enquanto eu engolia água sem saber coordenar minhas braçadas. Amanda era uma puta incapaz de dizer que me amava.

            Beijei Lívia pela primeira vez durante um dos frequentes e inexplicáveis sumiços de Amanda. Estávamos de férias e nada a convencia a falar comigo. A insistência da campainha, as ameaças, as flores, as ligações diárias, os xingamentos, os quilos que perdi. Engoliu-se, é o que sempre digo quando meus amigos da época insistem em perguntar. E Lívia me ajudou. Minha amiga do colégio tinha pais católicos e queria que eu parasse de fumar, enquanto Amanda me presenteava com maços e mais maços que perpetuavam meu vício ainda recente. Lívia às vezes não entendia as entrevistas que víamos na televisão, é verdade, mas se pendurava em meu pescoço cheia de um sorriso cândido que lhe escapava às bordas do rosto e repetia que me amava olhando fundo nos meus olhos ainda indecisos. Eu me sentia amparado nos braços virgens daquela nova mulher. Eu esperava que Amanda desaparecesse, mas aquela puta sempre voltava.

            Quando a vi voltando, subindo a rua em minha direção com uma tranquilidade insana nos olhos, diminuí. Senti minhas pernas encolhendo, meus braços perdendo a função, minha cabeça apertando o cérebro até que ele começou a vazar primeiro pelo ouvido direito, depois o outro. Ela chegou e envolveu meu corpo diminuto com todos os seus cheiros e disse que estava com saudades, aquela louca! Eu estava em casa, eu era o homem mais feliz do mundo. Senti meus órgãos colapsando enquanto eu negociava com minhas cordas vocais e arrancava de mim o maior não jamais presenciado por vidas humanas. Tive muito medo que ela se transformasse num falcão impiedoso, talvez, e voasse baixo para me rasgar com as suas garras vingativas. Eu queria que me pedisse pra ficar, que me oferecesse a perdição de seu corpo e que fizéssemos as pazes e fôssemos para minha cama e que Lívia morresse sem que meu celular sequer tocasse.

            Hoje, vi Lívia parada na porta do meu quarto de menino. Eu estava de costas para ela e fumava um cigarro com o pau flácido e grudento ainda na mão, vocês se lembram.

            É hora de ser pai.

Mina Vieira.
terça-feira, 27 de novembro de 2012

Fumaça.



1. Moderato melancolico.

V. desceu de um carro preto na esquina da Amálio Rocha com a Acre às onze da noite. Enquanto empurrava com desânimo a porta amassada do lado do passageiro, virou o pescoço suado para a esquerda e aparentou ensaiar um beijo de despedida que jamais aconteceu. V. talvez não se lembrasse da umidade de um beijo. Certamente, não se lembrava também da água suja empoçada nos buracos da calçada, da lama fluida que corria no meio fio ou do lixo já tão familiar quanto o seu próprio.

Bateu a porta e caminhou aos tropeços rumo ao seu lugar de hábito no muro que ainda nos fuzilaria. Com os saltos de suas sandálias cobertos de lama, V. arrastava lentamente um de seus pés na tentativa de expulsar uma embalagem plástica. Quando livre, já tinha o peso do corpo sinuoso recostado no cimento rígido e vasculhava a bolsa pequena. V. também aplacava o tédio de sua espera na fumaça de cigarros consecutivos.

A chama vacilante trepidava entre dois dedos amarelados e se inflamava hipnoticamente a cada uma de suas tragadas tão frequentes. Gotejávamos o nosso suor salgado e, à distância, V. parecia tremer. Talvez tremesse a saliva de seu último cliente, talvez tremesse as cáries nos dentes do próximo, mas não iria embora antes das câimbras se tornarem insuportáveis e de seus odores pungirem nossos sentidos.

2    2.  Adagio poco febrile.

Eu via o horror naqueles olhos pequenos quase ocultos por duas pálpebras flácidas pintadas de um azul que não existia na natureza. Suspeito que aqueles olhos jamais houvessem sorrido. Sequer antes da primeira noite em que ela acordou com o pai cheirando-lhe as coxas e tapando-lhe o grito, ou mesmo antes da primeira mordida, do primeiro cigarro apagado no suor de sua carne, do primeiro contato de seus olhos mortos com a saliva viscosa de um fumante: V. conhecia o horror antes mesmo de despontar da vagina de sua mãe analfabeta.

Ela já não tremia, finalmente. Quando seu cigarro acabou, o filtro branco marcado de batom foi lançado com desprezo numa poça d’água e, imediatamente, nossa musa voltou a vasculhar a bolsa pequena. Era como se a vida estática a ofendesse. Contemplar a rua, cerrar os olhos para descobrir os motoristas e suas sedes, contentar-se com a espera – tudo isso a corroia. Como se a própria percepção de seus batimentos cardíacos impecavelmente ritmados ou da quentura agradável de seu hálito honesto provocassem-lhe a pior das afrontas. V. estava tentando empurrar dois comprimidos brancos rumo ao fundo gentil de sua garganta quando um Fiesta estacionou em sua frente.

Quatro homens estavam no carro. De vez em quando, o que estava dirigindo levava uma garrafa à boca sem nunca ousar encarar V.. Os outros a engoliam. Ainda acovardados e de vidros fechados, três animais sussurravam dentro de um carro prateado enquanto sentiam a familiar pancada de sangue preenchendo três cacetes ansiosos. Nunca haviam feito aquilo. Quando um deles abriu o vidro e colocou o braço pra fora num convite claro à aproximação, tudo o que V. pôde decifrar de sua fala foi uma língua estalando, úmida, no céu de uma boca pavimentada de menta e alcatrão. Ele corou. Logo, a besta com quem dividia o banco veio em seu socorro. Nós quatro, ele disse.

Nunca vi V. dizendo não.

Ela checou o horário em seu relógio dourado, inflou o peito num exercício de preparo e tentou, hesitante: - Duzentos. Minhas vistas alcançaram uma das portas traseiras do carro se abrindo sem que ninguém fosse descer e V., em silêncio e cheia de um desgosto de rasgar a cara, aconchegou-se entre os dois homens que estavam no banco de trás.

V. demorou a voltar.

      3. Grave disperato.

Eu já estava indo embora quando vi o Fiesta dobrar a esquina de baixo sem fazer questão de usar os freios. O carro passou por mim e parou alguns quarteirões à frente. Quando a mesma porta traseira se abriu, V. foi cuspida impiedosamente. No chão, pude vê-la parada de pernas meio abertas e olhando fixamente para cima enquanto o carro desaparecia no vórtex da madrugada. Estava escuro, era difícil entender se respirava, se gemia, se rezava, se chorava, se morria ou se apenas se recompunha antes de irmos embora no mesmo ônibus. Acendi um cigarro e tomei fôlego para descrevê-la de perto. Três tragadas. Quase toda a fumaça para dentro dos meus pulmões e quase nenhuma para fora de mim. Nunca antes havia andado tão devagar.

As roupas baratas de V. estavam molhadas e sujas e rasgadas e fediam. Cigarros, merda, sangue, cerveja, saliva, urina, não sei ao certo. Suas orelhas estavam rasgadas e não tenciono imaginar em qual de seus possíveis orifícios os brincos haviam se perdido. Seu pescoço estava tomado por marcas nítidas de dedos e seus olhos outrora pequenos e bem protegidos por aquelas pálpebras pintadas agora me olhavam inchados e mendicantes. Seus dedos dos pés se contorciam num ensimesmamento de quem desiste da vida. Vi ausência onde antes costumava ver dentes. Vi duas poças de sangue onde antes via joelhos. Seus cabelos eram um emaranhado indecifrável de esperma e saliva. Cabelos de quem desistia da vida pela terceira ou quarta vez.

Três tiros. Ninguém pensa que vai amargar o fim da vida na rigidez impiedosa de uma calçada suja, nem que vai sentir insetos dos quais o nome você nem sabe passeando pelos seus membros inertes. Lamento ter morrido sem chegar perto de entender por que aquela mulher olhava para o céu antes de morrer. Mirando o chão, eu nunca mais me mexi.

Mina Vieira.
quinta-feira, 30 de junho de 2011

Gardel.


Ele aconteceu no começo de um janeiro acalorado e cheio de vermelhos quentes que pontuavam o céu poluído pesando sobre nossas cabeças. Lá dentro, sob luzes impiedosas que nos faziam menos bonitos, nos olhamos. Não éramos ordinários, nos reconhecíamos. Minha saia vermelha empurrava meus quadris em direção à camisa larga que ele vestia, o couro das minhas sandálias ansiava por pisar-lhe o peito branco de poucos pelos, minha boca ardia de vontade de ser engolida por seu sorriso preguiçoso e o mundo todo podia notar facilmente como eu sofria, agoniada, por não poder tocar-lhe imediatamente o bigode esquecido. Doíamos. Numa batalha de derrotados óbvios, nos olhávamos desejando que pudéssemos mergulhar para dentro do outro e desaparecer envoltos em sangue desconhecido.

Dançávamos um pesado tango argentino que já durava uma noite inteira: olhares lancinantes seguidos de sorrisos excitados e promissores, pequenas descobertas sobre nossos corpos ainda distantes, goles de cerveja que jamais aplacariam nossa sede verdadeira – jogos infernais. Ficávamos bêbados e desinibidos, mas continuávamos evitando qualquer aproximação ou outra forma de contato direto. Chegávamos a nos amar com a força de quem aprisionaria a carne viva do amado entre os dentes e, por isso, eram necessários grandes esforços para mantermos nossos pés imóveis e evitarmos que retalhássemos nossas roupas bem escolhidas e nos engolíssemos sem considerarmos a imundície do chão.

Não nos conhecíamos. Sofria de amores irremediáveis por um homem cuja boca eu nunca havia ouvido pronunciar palavra sequer, mas que eu afirmava ter voz grossa e fala pausada. Sabia que dirigia mal, que usava perfumes adocicados, que morava com os pais e que era comprometido. Ia sabendo as coisas todas conforme passava na frente dele e sentia seus olhos letais percorrendo minhas costas. Sentia meus poros se abrindo para receber pedaços dele: resquícios de um cheiro que fugia rápido, o som das unhas limpas tocando a garrafa, as vozes sufocantes das pessoas que vinham dizer coisas a ele. Um passo de cada vez, rodopios perigosos que embalavam dois pares de olhos numa fusão sem adversários. Mas fomos embora.

Dias e dias se passaram sem que eu conseguisse dormir antes de evocar a imagem daquele corpo desconhecido. Enquanto trabalhava, imaginava desfechos para o nosso tormento, perguntava a mim mesma se era real o que havia acontecido, sofria com a certeza de não poder repetir a tontura e o delírio encontrados naqueles olhos escuros em um janeiro acalorado. Esquecia de alimentar meus gatos, dirigia olhando para os lados e o procurava diariamente nos pedestres que atravessavam a rua sem pressa. Por último, quando não conseguia aplacar o desespero, voltava ao local do nosso encontro tentando reproduzir o que eu ainda não sabia ser verdade ou puro desequilíbrio de uma mente criativa demais e meio bêbada.

Semanas corriam. Por mais que eu me esforçasse, minha memória ingrata ia apagando os poucos vestígios dele que insistiam em sobreviver e, não muito tarde, esqueci-me dos cabelos mal tratados, da voz grossa, dos pés grandes, da roupa branca e da cor dos carros de seus amigos, da marca da cerveja que bebia, do sorriso inocente de sua provável namorada, do nome da rua, da dor insuportável que sentia quando o olhava e não conseguia alcançá-lo. Só não podia me esquecer dos olhos que me olhavam de baixo pra cima enquanto ele mantinha a cabeça meio baixa.

Depois de curada, acidentalmente nos encontramos e voltamos a dançar. Uma dança mais curta, sejamos sinceros, mas de igual intensidade. Ele mordia os lábios finos e esperava que eu me distraísse para, epifânico, passar por mim dezenas de vezes. Pude ter certeza de seu perfume. Não era adocicado. Na verdade, ele cheirava a um dia inteiro de trabalho, todo cheio de uma sinceridade que me fazia mais excitada que comovida. Desta vez, sabia que meu vestido justo o aprisionaria de forma infalível e estava pronta para apresentá-lo ao mundo ensurdecedor dos meus orgasmos. Era a única forma de poder sonhar em paz quando voltasse para casa, a única forma de evitar as olheiras que eu sabia que viriam, a única forma de não mergulhar pela segunda vez na obsessão adolescente que proibia meus amigos de se aproximarem. Mas, ele desapareceu.

Com meus olhos já sentindo falta dos dele, percorri todos os cantos a procurá-lo. Naquela noite, tive dores no pescoço e tomei dois comprimidos para me esquecer dos movimentos frenéticos que minha cabeça havia feito enquanto o caçava. Inútil. Só nos encontramos novamente quando ambos estávamos indo embora. Eu, sentindo um frio momentâneo de ar condicionado, caminhava de braços cruzados em direção ao carro sem disfarçar minha inconsolável decepção. Ele estava parado. Braços cruzados, também, armado do seu pior olhar e me fuzilando com uma crueldade da qual não consegui escapar intacta. Diminuí o ritmo dos meus passos e passei a me arrastar lentamente enquanto o sugava, enquanto implorava para que ele viesse colocar seus braços em minha cintura antes que eu caísse. Acho que estava vermelha. Meu corpo todo reconhecia o ardor do primeiro encontro e se negava a abrir a porta do carro enquanto ele não se aproximasse e eu não pudesse experimentar a exatidão dos seus beijos teatrais. Mas meu corpo não sabia de nada.

Finalmente, descobrimos nossos nomes. Em casa, diante da infalibilidade do mundo virtual, voltamos a nos olhar e flertávamos de longe. As pistas surgiam como que por milagre, milhares de coincidências se uniam para conspirar a favor de nosso talvez inevitável encontro físico. Morávamos na mesma cidade, frequentávamos os mesmos lugares, rezávamos para os mesmos deuses, ouvíamos as mesmas músicas, tínhamos os mesmos amigos, bebíamos as mesmas bebidas, gemíamos as mesmas sujeiras, idolatrávamos os mesmos ídolos, experimentávamos os mesmos porres e jamais nos tocávamos. Sequer admitíamos o incômodo que a existência do outro nos causava e, apesar da minha incontrolável necessidade de verbalizar tudo, continuávamos a nos ignorar. Até que nos encontramos num bar escuro.

Já num inverno que me obrigava a cobrir as pernas, notei-me indefesa ao sair do banheiro e vê-lo andando rumo a onde eu estava, cheio de dificuldades e entraves impostos por um mar de gente que não entendia a importância daquela caminhada. Enquanto eu tentava organizar meus cabelos volumosos, nossos olhos se beijaram cheios de uma nova urgência. Nossa comunhão começava ali: longe de qualquer quarto de motel, sem pretendermos exibir grandes extensões de pele, distantes de qualquer contato real com a umidade do outro, longe de experimentar meus ombros naquela boca de hálito quente. Sorrimos. E, às vezes, em meus momentos de maior delírio, chego a acreditar que talvez tenhamos ensaiado um olá seguido de um beijo desajeitado no rosto. Entretanto, não há grandes certezas.

A única certeza que carrego é a de que ficamos bêbados. Durante nosso último encontro, bebíamos com uma sede assustadora enquanto nos olhávamos e olhávamos e olhávamos e olhávamos e desejávamos que todas as pessoas que insistiam em interromper nossos momentos de contemplação morressem de forma dolorosa. Criávamos mecanismos para nos aproximarmos de forma sutil e nos demorávamos cada vez mais perdidos na imensidão hipnótica do olhar do outro. Não havia mundo. Não havia música, não havia frio, não havia tempo. Porém, meu corpo continuava não sabendo de nada.

Minhas pernas mal respondiam aos comandos do meu cérebro e, com dificuldade, me debrucei sobre o balcão para pedir mais uma cerveja. A última. Sentia seu cheiro me nocauteando pelo lado esquerdo e, apesar do medo que enfraquecia minha voz, fui capaz de olhá-lo de perto. Meus seios rijos quase chegavam a tocar-lhe o peito e aposto que era possível enxergá-lo no reflexo das lentes dos meus óculos de armação grossa. Olhei. Ele falou. Com a voz grave que eu sabia que teria, me perguntou como é que eu estava. Foi como se me conhecesse, foi como se sempre me perguntasse como as coisas andavam e como se eu, muito adulta, sempre respondesse que tudo ia bem para depois arruinar minha sobriedade ensaiada dizendo que gostava muito do cabelo dele. Foi como se ele sempre risse.

Mina Vieira.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Nietzsche aos 14.


Há oito meses, A. entrava quase que diariamente às 7h na escola em que ambos dávamos aula e me cumprimentava com um sedutor abraço matinal. Ocasionalmente, demorava mais que o usual esfregando sua barba macia na minha bochecha direita e terminava por deixar minha calcinha molhada. Às 7h, de olhos ainda inchados e tomada por um pequeno mau humor, eu me permitia sentir certa excitação apenas por notar o cheiro enjoativo de creme dental que saía da boca bem desenhada de A., professor jovenzinho e cheio de aspirações revolucionárias.

Além das aspirações revolucionárias e da barba macia, reunia em si várias outras qualidades capazes de levar suas alunas – que, consequentemente, também eram ensinadas por mim - a despejar em minha direção diversos comentários sobre ele. O cabelo era o tópico mais frequente nas rodas de conversa do intervalo ou mesmo nas fofocas irritantes de meio de aula que eu tão ferozmente tentava combater. As garotas se derretiam diante dos cachos desorganizados de A. e aparentemente tão macios quanto a sua barba. Suspiravam ao vê-lo passando as mãos cheias de giz despreocupadamente em seus cabelos enquanto apoiava-se no quadro negro e falava sobre marxismo com os olhos brilhando e um charme inacreditável. Logo em segundo lugar vinha a sua irremediável cara de canalha: com dentes meio separados enfeitando um sorriso encantador, ele era capaz de levar qualquer aluna à loucura com qualquer um de seus comentários, inocentes ou não. Pois eu sabia. Sabia de cada uma das tentativas pervertidas de levar alunas de quinze ou dezesseis anos pra casa, sabia de todas as vezes em que havia sido bem sucedido, sabia de dois ou três hímens que havia mandado pro espaço, sabia de umas garotas que choravam por ele no banheiro e de umas outras que me odiavam porque conversávamos nos corredores e nos abraçávamos sempre que possível.

Ele era desgraçadamente bonito, é preciso concordar. Quando estava frio, vestia camisas claras de mangas compridas e tecido leve que se assemelhavam a pijamas e exatamente nesses dias nossos abraços tornavam-se intermináveis pra escola toda parar e comentar maldosamente que os dois professores revolucionários e adorados pelos alunos talvez estivessem tendo um caso. Mas não estávamos. Eu passava as unhas nas suas costas por baixo da camisa e ele me apertava mais pra perto pra sentir meus seios contra o seu peitoral digno de várias horas de admiração. Às vezes, eu chegava a deixar escapar pequenos gemidinhos enquanto A. passava a barba no meu rosto e o via se afastar com um sorriso safado grudado na cara. O mesmo que usava com suas alunas, eu tinha certeza. E, por isso, eu era imune ao seu charme insuportável. Afinal, tinha mais de dezoito anos e não depositava grandes esperanças em homens que costumavam comer garotinhas virgens e inexperientes. Ele, provavelmente, era muito ruim de cama. E inseguro. E egoísta. E cheio de assuntos insuportáveis e erros de português.

Aqui, espero que já tenham deduzido que nunca havíamos nos encontrado fora da escola. Nunca trocamos telefones, nossos e-mails sempre foram dotados de um profissionalismo exemplar e nossas conversas se reduziam a amenidades nada calorosas ou pessoais. Mas eu me vestia pensando nele. À noite, quando geralmente preparava as aulas do dia seguinte, pensava incessantemente no que vestir. Sabia que ele adorava as minhas saias, minhas sandálias de couro, os vestidos que marcavam discretamente a minha bunda grande, meu rosto sem maquiagem, minhas orelhas sem brincos. E eu me esforçava pra arrancar dele seus elogios sutis e os olhares indiscretos que às vezes lançava a todas as direções do meu corpo. Sorríamos quando nos encontrávamos. Aliás, provocávamos encontros casuais como dois adolescentes idiotas e às vezes eu o pegava me olhando sem disfarçar, me encarando e umedecendo os lábios num convite claro ao duelo. Mas fui capaz de manter uma distância segura de A. até setembro, mês no qual o vi parado em minha frente sem camisa, suado e ofegante.

Era feriado e eu estava sozinha, como quase sempre estava. Cansada de ler deitada no sofá de casa, cheia de um calor que me fazia tomar um banho a cada trinta páginas, decidi exalar intelectualidade num parque que ficava a poucos quarteirões da minha casa. Tomei um último banho, prendi o cabelo e andei até lá. Não me olhei no espelho antes de sair de casa, não passei um hidratante diferente em cada membro do meu corpo e muito menos perdi segundos de leitura me perfumando exageradamente. Fui, apenas. Lá, busquei uma sombra e me sentei sobre o lençol branco que havia levado pra evitar que a grama despertasse coceiras incômodas e atrapalhasse minha concentração. Com uma água de coco na mão, retomei minha leitura e por uns vinte minutos não desgrudei o olhar das páginas. Mas então ele se sentou do meu lado sem pedir licença, sem me cumprimentar, sem me dar nenhum de seus abraços costumeiros e sorriu deliciosamente ao conferir o título do livro que agora jazia sobre as minhas pernas nuas e não bronzeadas. Thoreau,é? Eu sabia que ele estava impressionado. Thoreau, professor. Respondi debochando e já me inclinando pra mais perto.

Thoreau e você de tie-dye curtinho, sem sutiã, na esquina da minha casa.

O convite estava feito. Era um dia tedioso, restavam-me apenas poucas páginas do livro pra terminar, a casa dele era ali na esquina, a minha era um pouco mais pra frente e ele estava passando as mãos nos cabelos como fazia na sala de aula. Eu mordia os lábios, me sentindo uma das suas adolescentes e, de forma inexplicável, via prazer nisso. Olhei para o peito firme de A. sem esforço algum pra simular outro interesse. Seus pelos bem distribuídos, claros, adornando a pele branca e molhada me convenciam melhor que qualquer proposta inteligente. Mas ele fingiu que não havia me convidado pra nada e em poucos segundos estávamos lá, quase recompostos, falando do Thoreau dele, do meu Nietzsche, do meu Sartre, dos meus relacionamentos kunderianos que inconscientemente eu pedia pra que fossem os dele também. Nenhum erro de português, assuntos fascinantes, um cheiro bom vindo de todas as partes do seu corpo e minhas mãos subindo e descendo por aqueles pelos, às vezes perdendo-se entre duas coxas grandes que eu mal conseguia segurar. Ele olhou pros lados duas vezes, sem parar de falar comigo, segurou minha mão direita e me indicou onde seu pau estava. Eu parei de falar e abri a boca numa expressão de surpresa, susto e excitação. Com aquele pau latejando e aquele sorriso canalha sorrindo pra mim, eu fui pra casa dele.

Trepamos em sua cama, em seu quarto rodeado de livros. Ele era, com toda a certeza do mundo, o homem nu mais bonito que eu havia visto até então. Sua beleza bruta estava presente desde os seus pés brancos até seus ombros largos e bons de apertar. A. me apertava muito, também. Enquanto me beijava com uma língua nada moderada, apertava meus braços finos com força e às vezes parava de me beijar pra assistir minha reação. Eu sempre gemia mais forte diante dessas pequenas violências. Chupava-me com uma destreza inacreditável para a sua pouca idade e eu me contorcia gemendo o seu nome enquanto ele me batia, ainda meio tímido, e apertava a minha bunda com devoção.

Trocamos telefones, livros, CDs, filmes, roupas, confissões, favores, orgasmos, provocações, cervejas, banhos e as melhores trepadas da minha vida. Na escola, as garotas de A. nem imaginam e nenhum de nós quer que isso mude. Ele é de todas nós e deve continuar assim, sendo o homem nu mais bonito de nossas vidas. Uma vez por semana ele é meu e dividimos até mesmo meu chuveiro, coisa que até então eu não havia experimentado. Suas coxas são o melhor lugar para minhas mãos estarem. A cabeça daquele pau se aloja perfeitamente na minha boca quente. Suspiro enquanto escrevo e vou tomar banho pra aplacar a água na boca.

Mina Vieira.
quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Inveja.

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Antes, vamos às explicações: eu estava aqui tranquila, retomando um texto antigo cheio de sexo, cigarros, drogas, calcinhas sensuais, garotas possíveis e algum rock n roll (só o de sempre) e tentando terminá-lo, quando percebo que um pedaço dele que havia escrito um tempinho atrás simplesmente desapareceu. DESAPARECEU. Escrevi e não salvei, sei lá. Fiquei louca, obviamente. Enquanto me recuperava, fui lendo umas velharias e achei o texto abaixo, escrito num momento de inacreditável ternura e dúvida. É estranho, vou avisando. Nem sou eu. Achei que nunca publicaria e corro sérios riscos de perder uns dois leitores. Mas, toma!




Minha filha foi o primeiro bebê com o qual eu, de fato, tive contato. Não que antes dela eu não gostasse de crianças, mas eu nunca antes havia achado necessário estabelecer laços com alguém que não fala, não anda e que depende de mim completamente. Portanto, ela foi o primeiro bebê que eu segurei no colo por mais de 2 minutos. E eu não sabia como fazer aquilo. Parecia tudo desajeitado, ela parecia estar caindo o tempo todo e meu colo parecia - espero que só para mim - o lugar menos confortável do mundo. Era impossível fazer aquilo certo. Ainda no hospital eu tinha que me olhar no espelho segurando aquele embrulho pra ter certeza de que parecíamos plausíveis como mãe e filha. Ainda não sei se conseguíamos. Preciso confessar que eu queria muito que ela fosse um bebê normal, e não filha de um cabeludo mal humorado e uma menina de 18 anos que não sabe trançar o próprio cabelo. Então, enquanto me esforçava pra fazê-la parecer ordinária, um bebê qualquer, eu pude me dar conta do quão perfeita ela era. Seus poros eram impecavelmente fechados, ela tinha o olhar tranquilo de quem não conhece o mundo e uma ausência linda de marcas na pele. Eu, enquanto isso, sofria os efeitos do fim da minha adolescência, dos vinhos que eu havia bebido até ali, das doses de uísque, dos cigarros fumados, das noites inconsequentes, do sol tantas vezes ignorado e da carne de porco que comia quase diariamente. Mas tentei não invejá-la. Seria estranho invejar um bebê, talvez tão estranho quanto invejar uma equação matemática. Pensava não ser capaz de amá-la mais do que a mim mesma. Quando engravidei, o mundo ainda girava ao meu redor e eu me recusei por um longo tempo a deixar o picadeiro. Agora, tudo era Alice. Os elogios do pai, meu dinheiro, as músicas que ouvíamos, os presentes criativos de amigos meio artistas, todos dela. Continuei não sentindo inveja, mesmo sem entender. Em casa, longe de todos os olhares, pude aprender a lidar com aquilo. Eu, que sempre havia sido totalmente verbal, aprendi a observar. Ela apertava meus dedos e não soltava nunca mais. Chorava sempre, me pedia muitas coisas e não falava palavra alguma. Enquanto eu amamentava, me mordia com as suas gengivas nuas e me apertava sem sequer imaginar que aquilo doía. Ela me tomava muito tempo. Por quase um ano não tive tempo algum pra cuidar de mim. Minha pele deve ter ficado ainda mais mal tratada, ganhei peso, deixei de fazer as unhas toda semana, deixei de lavar os cabelos todos os dias, passei a ter cheiro de leite materno. Era inevitável. Era matematicamente impossível ser bonita e mãe ao mesmo tempo. Depois de uns anos as coisas foram melhorando, fui me acostumando com aquela nova condição e me adaptando ao novo estilo de vida. Um dia ela cresceu e completou sete anos de idade. Quando cheguei em casa, ela estava brincando com os chapéus do pai, se enrolando nos meus xales e usando uma miniatura de calça jeans. Ela é linda. Eu podia sentir inveja, agora, mas apenas caminho até ela e a aperto, interrompendo a brincadeira.


Mina Vieira.


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Relato (ou Homem)


Moro em uma cidade que se pretende grande e descolada. Bares modernos, escuros e com ar condicionado potente, prédios altos, casais inusitados se beijando freneticamente pelas esquinas e cinco sorveterias a cada quarteirão. Na minha cidade que avança lentamente rumo ao caos mora Cíntia. E Cíntia é, com o perdão da hipérbole, a mulher mais fascinante que já conheci. Ela me amava, apesar de eu achar que jamais havia merecido. Com proporções perfeitas, eu deixava que ela ocupasse minha cama três vezes por semana, às vezes mais, e a contemplava com ternura e boa dose de desejo sempre que saía para trabalhar. Proporções perfeitas! Seios brancos de mamilos delicados que eu mordiscava em reverência e logo abaixo aquela barriga lisa de quem havia comido pouco quando criança, acabando num ventre largo que às vezes parecia exagerado diante de tanta miudeza: era o corpo de Cíntia estirado em minha cama. Mas era também impressionante quando acordada, é necessário dizer. Sua memória infalível me salvava constantemente de diversos possíveis problemas e a graça com que demonstrava conhecer cada centímetro sujo dos meus infinitos labirintos mentais não me incomodava nunca. Deixava que Cíntia falasse por mim, realizasse minhas vontades, me lembrasse das minhas convicções e cavalgasse destramente sobre mim sem que eu sequer ameaçasse interrompê-la. Assim, eu vivia feliz e confortável há três anos ao lado dos 1,74m de Cíntia.

Mas, claro, houve uma noite em que ela não estava aqui para me fazer acreditar em minhas próprias convicções. Um erro fatal. Eu estava em um dos muitos bares modernos, escuros e gelados que conheço e Cíntia estava lá longe irritando o mundo com o seu equilíbrio e a sua estranha compreensão de todas as coisas, linda e ocupada. Então, decidi ser homem.

Clarissa foi andando rumo ao banheiro e, mesmo quando já estava passos distante de mim, ainda era possível sentir o seu perfume. Para já me redimir, digo que era tão nauseante quanto a sua voz. E isso quer dizer muito. Então, ela voltou e me cumprimentou cheia de uma intimidade e um interesse que há tempos eu não presenciava partindo de um corpo feminino que não fosse o de Cíntia. Pensei nela, pensei na minha Cíntia lá longe enquanto meu pau endurecia impiedosamente por uma outra que nunca seria digna de uma das minhas ereções. Logo eu, eu que havia gastado grande parte da minha adolescência convencendo a mim mesmo e aos outros de que não me excitava com clarissas, agora estava ali, ridículo, tentando esconder meu tesão por uma mulher que reunia em seu corpo pouco gracioso uns tantos motivos pelos quais eu repudiava a humanidade.

Porém, Clarissa aproximava sua boca grande da minha orelha para vencer o barulho da banda ruim e me confundia com perguntas e comentários incoerentes – mas às vezes verdadeiros – sobre Cíntia, a minha. O intervalo entre meus goles se tornava cada vez menor, até que o ato engolir minha cerveja gelada se consolidou como constância. Às vezes, a voz esganiçada e falha de Clarissa parecia dizer algo interessante e às vezes eu passava a mão em seus cabelos e pensava nos cabelos de Cíntia que sempre dançavam hipnoticamente quando ao vento. Mas não havia a mulher que eu amava em Clarissa e talvez por isso quiséssemos nos beijar. Ali. Cercado de pessoas que sentiam verdadeiro carinho por minha vida conjugal, que a respeitavam e chegavam a invejá-la. Ali, beijei Clarissa com a boca que há três anos decidi entregar a outra mulher, escolhida espontaneamente num mar infinito de possibilidades. Traí, além de Cíntia, também minha própria escolha sem sequer ponderar, minha maior convicção, o Deus cujos pés eu beijava quase todas as noites antes de dormir. Como um animal, sugava Clarissa para que todos vissem, metia minha língua meio bêbada numa boca desconhecida e preciso confessar que gostava. Uma noite, tive um corpo que não o dEla em minhas mãos e fui feliz.

No dia seguinte, negava-me a falar com Cíntia não sei se por covardia ou medo ou arrependimento ou pena. Mas me doía pensar nela e me lembrar de como eu havia tido a coragem de começar a destruir o que nós, juntos e apaixonados, construímos com afinco. O dia arrastou-se como que por tortura e, a cada ruído menos usual que me surpreendia, tinha a certeza de ter sido descoberto. Ao mesmo tempo em que fugia dos telefonemas e me esquivava do encontro inevitável, desejava ouvi-la e perceber que tudo estava bem e que o amor prevaleceria e que em poucos meses estaríamos morando juntos, comendo a mesma comida e depositando dinheiro na mesma conta. Mas minha Cíntia era feroz e não foi possível evitá-la por muito tempo. Naquela mesma noite a tive subindo no meu colo, lambendo meu pescoço e gemendo meu nome com a cara metida no travesseiro. Eu a amava com toda a minha sinceridade e devoção, mas ainda me excitava quando pensava nos seios grandes de Clarissa pouco abaixo do meu peito.

Passou. Cíntia sofre as dores da minha inconsequência até hoje, eu sei. Nunca contei a ela e pretendo nunca contar, pois isso ofenderia a serenidade que tanto sofremos para atingir, mas ela me olha doída a cada menção à Clarissa e sei que me odeia durante os seus silêncios. Arranha minhas costas de leve, encarando o teto, enquanto se questiona sobre quando é que eu vou aprender a dizer a verdade e, principalmente, sobre os meus motivos. Às vezes comete a estupidez de se achar feia e indigna. Agora, se nega a ter filhos e diz que minha porra dentro dela a incomoda, mas continua engolindo. Não sei dizer até quando. Ela, brutal, me pune sutilmente e sem de fato querer me machucar. Pretendo perdoá-la quando decidir me morder até sangrar e rezo todos os dias – às vezes com medo de ser atendido – para que ela também se permita pecar e me traia e eu talvez finalmente comece a me sentir menos pesado. Amo Cíntia verdadeiramente.

Mina Vieira.
quarta-feira, 30 de junho de 2010

Czechvar.


Enquanto ia levantando da mesa pra ir ao banheiro, ele me disse que meu único defeito era não gostar de vodca. E ele tinha essa mania: quando ficava bêbado, despejava umas frases que pareciam não se encaixar na conversa que estávamos tendo no momento, ou em qualquer outra, de qualquer outro casal, em qualquer outro momento. Eu, normal que sou, demorava e só as comentava quando tinha certeza de tê-las entendido, coisa que nem sempre acontecia. Mas naquela terça-feira à noite, no boteco de sempre, depois de oito cervejas caras, eu quis saber qual era a dele com o meu asco à vodca, porque eu tinha essa mania de querer saber exatamente das intenções escondidas por detrás de cada uma de suas palavras. Acreditava que não existiam coisas ditas sem propósito e que, caso existissem, eu certamente as odiaria. Eu me esforçava por ser sempre minuciosa com o que falava, porque ele era imprevisível e louco, podendo reagir a um mesmo comentário com silêncios insustentáveis pelo resto da noite ou fugas repentinas. Portanto, eu exigia que ele tivesse o mesmo cuidado ao despejar seus rompantes de sinceridade rumo ao meu corpo magro dominado pelo mais delicioso lúpulo tcheco, porque eu era louca, russa e não gostava de vodca.


Fiquei arrumando o sutiã enquanto esperava a eternidade que ele demorava no banheiro. Ele talvez estivesse fumando lá fora sem me avisar, talvez tivesse se esquecido de mim aqui no balcão e parado pra conversar com algum belo exemplar do sexo feminino que depois ele juraria não ser atraente ou sequer ter existido. Outra mania. Éramos um casal tolerante, todos diziam, mas ninguém ousava comentar sobre as longas e sofridas escaladas rumo ao nosso equilíbrio invejável.

Quando nos conhecemos, meus quinze anos tentaram me manter metros e metros afastada do universo adulto dele: eu não bebia, comia biscoitos integrais, ouvia Yes e saía de casa uma vez por mês pra trepar com desconhecidos que tremiam diante da minha bunda bem torneada de adolescente e dos meus peitinhos brancos e minúsculos. Ele vivia enchendo a cara com amigos que há tempos haviam terminado a faculdade, fumava maconha, ia a shows do Ozzy Osbourne e trepava com desconhecidas de corpos bem distantes da perfeição pelo menos duas vezes por semana. Eu queria me casar com um idiota que me amasse incondicionalmente e que perdesse a virgindade comigo, que fizesse dinheiro honesto pra pagar a escola dos três filhos que teríamos e que me escrevesse cartas de amor no dia dos namorados depois de dez ou quinze anos de casamento. Ele vinha fugindo de relacionamentos promissores há mais de dois anos, depois de ver o último deles afundando graças a meses e meses de louça suja na pia e vinha tentando, desde então, destruir seu fígado, seus pulmões, seus neurônios e seu dinheiro até finalmente morrer.

Então, eu apareci pra ele e ele apareceu pra mim. Apesar de improvável, sabíamos cantar as mesmas músicas e ele gostou da minha bunda – sempre ela - e eu gostei do cabelo dele e por duas semanas não conseguimos parar de dividir nossas histórias. Ele me ouvia contar coisas sobre meus pais mortos e ria do sotaque russo que eu tentava forçar, sem sucesso. Dirigia horas e horas me ouvindo falar enquanto pensava em um lugar decente pra matar a fome que eu sempre tinha e sempre acabava tomado por algum mau humor que eu não entendia e que ele não fazia questão de explicar. Tentava tirar minhas roupas no cinema e eu, fingindo-me de ofendida, segurava suas mãos só pra depois soltar e deixar começar tudo de novo. Desde o início, notei que sua língua era mais hábil que o normal e quase recuei quando vi seu pau ereto pela primeira vez, em nosso terceiro encontro. Não havia visto muitos paus na vida e aquele era, sem dúvidas, impressionante, do tipo que deixa a gente sem saber direito por onde começar, mas que depois acaba se mostrando delicioso e anatomicamente ideal. Tive que chupá-lo. Apesar de termos concordado em passar um tempo naquele quarto de motel só porque estava calor e queríamos ar condicionado, eu não me permitia e nem estava conseguindo negar sexo por completo. Então, como por consolo, deixei que gozasse duas vezes na minha boca.

Mesmo com todo o entusiasmo e toda a nossa boa vontade, tivemos primeiras trepadas decepcionantes e nós dois sabíamos disso. Não conseguíamos nos mexer ao mesmo tempo, eu não gozava nunca e terminávamos todas as nossas tentativas frustrados e com raiva um do outro. Pensamos em desistir, pois ele estava velho e sem paciência pra me ensinar a beber e não nos dávamos bem na cama. Eu sabia que ele não era meu idiota e que não me amaria incondicionalmente, mas antes de fugirmos acabou acontecendo. Com o carro estacionado numa rua escura e estreita, mas que cortava uma grande avenida, ele me pediu, depois de uns beijos brutos e cheios de língua, que eu me sentasse em seu pau, de costas pra ele. Obedeci. Eu gemia alto e segurava firme com as duas mãos na direção. Ele me bateu. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes. E então nos tornamos namorados.

Agora, sete anos depois, eu bebia diariamente e havíamos descoberto inúmeras semelhanças cinematográficas e ideológicas, a diferença assustadora entre nossas idades havia deixado de ser piada entre seus amigos e eles finalmente me levavam a sério. Ainda nos estapeávamos quando ele queria ouvir Neil Young a noite toda ou quando eu elogiava demais os meus quadrinhos favoritos e dizia que ele tinha que ler isso e tinha que ler aquilo, mas morávamos juntos, limpávamos a casa todos os domingos, vendíamos pão, fazíamos traduções exaustivas, trocávamos apelidos ridículos e bilhetes safados, engordávamos, tentávamos ter um filho e trepávamos maravilhosamente bem algumas vezes por semana. E ele sempre me enchia o saco com essa merda de vodca.

Nós dois passávamos todos os dias de nossas vidas alcoólatras nos dedicando às bebidas de maior qualidade. Poucos amigos aceitavam nossos convites pra sair, éramos uns chatos. Verdadeiramente apaixonados por cerveja, direcionávamos grande parte de nossa renda mensal a experimentá-las e discuti-las. Tínhamos uma paixão indestrutível por uma marca inglesa e por absolutamente todas as cervejas tchecas, que eram as mais bem lupuladas e que, na minha forma peculiar de descrever cervejas que ele entendia tão bem, exalavam cheiro de bosque lodoso quando abertas. Às vezes, porém, acabávamos cedendo e nos rendendo a outras bebidas: uísque quando estávamos prestes a trepar ou vendo filmes de faroeste na TV, vinho quando estávamos prestes a trepar e/ou quando estava frio, e ele me admirava – sem participar - enquanto eu apreciava, como homem feito, minhas doses de cachaça de quase todos os estados brasileiros que tomava quando queria ficar bêbada rapidamente. Mas não vodca. Nunca vodca. Odiávamos vodca. Eu, principalmente. Vomitei tudo o que havia dentro de mim quando tomei vodca pela primeira vez e ninguém me convenceria de que uma coisa que precisa ser misturada com outra pra ser bebida é uma boa idéia.

Então, ele veio. O desgraçado veio andando sorridente com um irritante copo de vodca na mão. Daqueles de uísque, largo, e com vodca até a metade. Era uma das manias dele atingindo níveis absurdos. Ele fazia isso com comida também. Insistia pra que eu comesse coisas que odiava desde a infância, ficava dizendo come come come come come come come come come até me deixar puta, mas eu não comia. Aí jogava a coisa que eu não queria comer bem no meio do meu prato e continuava com o come come come insuportável. Por último, pegava com o garfo e colocava bem perto da minha boca, me fazia rir e pronto, enfiava lá dentro. E como eu o odiava nesses momentos. Chegava a gritar de ódio, às vezes chorava e explicava pra ele que aquilo era de uma maldade sem tamanho, mas não adiantava. Na semana seguinte lá estava ele tentando me fazer comer seus vegetais estranhos ou suas combinações que tanto me assustavam.

Você é russa, ele disse batendo o copo na mesa e fazendo o líquido transparente saltar. Tem que aprender a tomar como o seu pai tomava, todos os dias antes das refeições, sem frescura. Meus olhos se encheram d’água e eu implorei mentalmente para que ele não fizesse aquilo, pra que se sentasse, pedisse mais uma Fuller e continuasse a ser o cara legal com o qual eu havia escolhido morar. Mas não, ele já estava segurando o copo e a minha mão ao mesmo tempo. Eu o odiava. E por que ele não tomava? Por que é que ele não se entregava ao maravilhoso mundo russo da vodca sem gelo? Eu havia nascido lá e botado o pé na Rússia apenas duas vezes quando ainda era criança, mas nunca mais, não nutria nenhuma simpatia por aquele lugar ou pelos meus familiares russos e estava pouco me fodendo pra tradição ou para o que meu pai morto fazia todos dias. E ele insistia. Bebe bebe bebe bebe bebe bebe tem que beber bebe bebe bebe. Trinta segundos de tortura absoluta.

Você é um merda, eu falei. Você é um merda covarde, bêbado e idiota. Peguei minha bolsa, as chaves do carro em cima da mesa e fui embora. Voltei pra casa com o carro dele e sentindo imensa dificuldade pra dirigir, pois ele nunca havia me deixado dirigir bêbada. Ele chegou em casa uns vinte minutos depois, de taxi. Me deu um beijo na boca, me mostrou três lindas garrafas verdes que logo depois colocou na geladeira e perguntou se podia me levar pra cama. Acabei deixando.

Mina Vieira.

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