sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Vou deixar a mala.


Nunca gostei de homem frouxo. Sempre tive um problema irreparável com homens que não sabem o que querem ou que tem problemas em admitir qualquer coisa que seja. Aqueles que chegam sempre com o mesmo texto impressionante e que sempre vão embora dizendo que talvez ainda queiram ficar sozinhos, blá blá blá, você é louca demais, blá blá blá, sou um covarde que perdeu as bolas na cheia do rio São Franciso, blá blá blá. Eu, por alguma falha muito grande no juízo, fui parar morando no apartamento de um cara assim. Quando nos conhecemos eu estava sozinha num bar. Naquele dia eu tinha decidido não beber muito, mais por falta de grana do que por prudência, e isso me ajudou a conseguir manter uma conversa. Chegou dizendo que me conhecia, que sempre me via por aí, que sabia dos meus CDs favoritos e que eu tinha que ser mais aberta, mais fácil. Ficar menos na defensiva, sabe? Caralho, como alguém chega numa mulher sozinha num bar e vai dizendo que ela tem que ser mais aberta? Foda-se ele, eu pensei. Mas aí ele foi me convencendo devagarzinho. Falamos de Bukowski e Kundera, de Pink Floyd e de Beatles, de sexo anal e de dormir de conchinha. Era um cara engraçado, apesar de meio intrometido. Sacava todas as minhas piadas e sempre tinha umas muito boas pra contar. Tinha um charme de bêbado ao qual eu não conseguia resistir. Me pagou umas bebidas e eu andava adorando caras que me pagavam bebidas, disse que eu era bonita, colocou a mão na minha perna e a manteve por lá quase que a noite toda, me impressionou com os lugares pelos quais ele havia passado, falou de putarias brutais sem corar. Aí chamei o idiota pra ir lá pra casa. Eu dividia a casa com cinco homens, todos uns porcos preguiçosos. Homens não entendem o que limpeza quer dizer, principalmente os jovens. Eu dormia numa cama de solteiro num quarto sem janela que me fazia suar feito um leitão na churrasqueira e tinha todas as minhas coisas secretas e preciosas coladas nas paredes. Não dei a mínima. Ele estava mais bêbado que eu e provavelmente nem conseguiria ler nada. Foi se deitando na cama já abrindo os botões da camisa, esperando que eu pousasse em cima dele. Como um avião, mesmo. O cara era a pista de pouso e ficaria parado eternamente esperando que um avião enorme e eficiente fizesse todo o trabalho. Ou pelo menos a parte difícil dele. Quase reclamei, mas já estava morrendo de tesão e com preguiça de discutir e explicar todas as minhas teorias sexuais. Deitei, suguei a língua dele, colei minha boca macia naquela boca macia e esqueci que eu não era aberta ou fácil e que ficava sempre na defensiva. Botei a minha mão dentro das calças dele que eram largas demais pra aquele corpinho magrelo e fui buscar o meu prêmio. Trepamos uma vez. Conversamos sobre todo o nosso universo intelectual, sobre eu não ter gozado, sobre a produção literária nacional do século XXl, sobre suco de laranja de caixinha e sobre a recepção de José de Alencar na Bósnia. Outro teria broxado. Ele pulou em cima de mim, me chupou até que eu gozasse e me comeu daquele jeito que só as pessoas muito boas tem de me comer e me fazer chorar de tão bem comida que estou sendo. Mas não chorei não. Disse pra ele ficar, pra dormir lá. Quando acordamos não estávamos arrependidos e almoçamos juntos e nos tornamos um daqueles casais cor-de-rosa que andam sempre de mãos dadas e não se abandonam nunca. Ele me tirou daquela casa que eu dividia com mais cinco pessoas e me deu um quarto com janelas. Duas! Me deu prateleiras pra colocar meus livros, me deu uma mesa pra estudar, me deu uma cozinha limpa - porque não há amor que resista a duas semanas de louça mutando na pia -, me deu um banheiro sem cabelos no ralo e nunca usou meu sabonete do Snoopy, me deu ventiladores e um DVD e um liquidificador e jogos americanos e formas de gelo sempre cheias e... e tudo. Eu tinha uma casa, finalmente. E eu amava o idiota. Eu me apaixono muito fácil, é o que eu sempre digo. Teria me apaixonado se não tivesse ganhado todas essas coisas, teria me apaixonado se ele tivesse broxado logo na primeira vez, teria me apaixonado se ele tivesse pelos nas orelhas e teria me apaixonado se ele falasse tudo errado e não tivesse quatro dentes bem na frente daquela boca macia. Acho que eu me apaixonei porque ele tinha coragem de aparecer do nada, sentar na minha mesa e apontar tudo que ele via de errado em mim. Ele me encorajava a acordar de madrugada pra botar no papel as minhas ideias e não ficava bravo com o barulho que eu fazia, não reclamava com as portas que eu batia e nunca falou uma palavra sequer sobre eu deitar na cama com a toalha molhada enrolada no corpo. Era isso que o fazia irresistível, além dos mimos incontáveis e do sexo sempre maravilhoso. Mas um dia uma mulher me ligou e disse que os dois se viam sempre, que na verdade ele fazia isso com mais umas quatro mulheres e que era por isso que ela estava me ligando, porque estava com raiva. Tudo bem. Desde criança, quando eu pensava que um dia um homem me trairia e eu ficaria sabendo, eu me imaginava ficando bem quieitinha até que o cara decidisse confessar tudo, se ajoelhar, chorar lágrimas e mais lágrimas e me implorar perdão. Na minha cabecinha de criança eu não perdoaria, claro. Depois de adulta eu sabia que não conseguiria ficar quieta, nunca. Ao longo da minha adolescência e de frequentes desilusões amorosas tinha me tornado a coisa mais explosiva e burra do planeta. Nesse dia o idiota chegou em casa e eu já estava de malas prontas. Expliquei tudinho pra ele. Expliquei que eu estava quieta sentada na porra da mesa do bar, sozinha, sem olhar pra ele, sem demonstrar qualquer interesse e ELE se aproximou. Me encheu o saco, fingiu que me entendia, me tirou do conforto quentinho que era a minha vida de vadia decadente que divide a casa com cinco caras e dormia num quarto sem janelas pra ISSO! Pra um dia alguém me ligar e me dizer que a minha vida se tornou uma merda. Eu tô indo pra Piracicaba. Eu te amo pra caralho. Eu vou voltar, sou uma retardada, te amo feito uma idiota. Você pode gostar das suas cinco mulheres ao mesmo tempo que eu vou aprender a não ligar. Vou achar cinco ou seis homens pra mim também, vou riscar teus CDs favoritos que também são os meus, vou destruir as pregas de todas as calças que você usa pra trabalhar, vou bater teu carro e vou ficar uns dias sem falar com você. Mas vou voltar. Tô indo pra Piracicaba pra ver se eu mudo de ideia, pra ver se eu te odeio um pouquinho. Vou pra lá porque é só até lá que meu dinheiro chega. Vou pegar teu dinheiro, aliás. Grande parte dele. Vou te foder de todas as formas possíveis pra você aprender a nunca mais tirar mulher nenhuma da vida que ela leva, seja o quão deprimente for, pra depois se sentir no direito de destruí-la. Depois eu volto, atiro nas outras vadias e me torno a melhor mulher do mundo. Você vai me amar tanto que nunca mais vai conseguir desejar ninguém. E vai me dar um gato, e dizer que eu sou linda o tempo todo e tirar férias do trabalho pra ficar mais tempo comigo e vai me pedir filhos. Depois de tudo isso vai estar tudo bem eu te amar de novo. Você topa? Então tá. Fica combinado. Vou ali longe me vingar de você e volto logo. Me espere, fique com saudades, se arrependa bastante e saiba que da próxima eu posso não voltar. Eu sei, eu volto.

Mina Vieira.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Estupro.


E Deus inventou o estupro. Desde então nós, mulheres, fomos ensinadas a ser cuidadosas sobre muitos assuntos. Temos que ser cuidadosas sobre o que vestimos e como vestimos, sobre as cores que gostamos, sobre como nos comportamos, sobre os lugares pelos quais andandamos, sobre quando andamos nesses lugares, sobre as pessoas com as quais andamos, sobre em quem confiamos, sobre o que fazemos, sobre onde fazemos, sobre com quem fazemos, sobre em que posição fazemos, sobre o quanto gememos, sobre o que bebemos, sobre quanto bebemos, sobre qual cigarro fumamos, sobre quantos cigarros fumamos, sobre onde compramos nossos cigarros, sobre as drogas que usamos, sobre o relacionamento que mantemos com os traficantes, sobre se trocamos olhares quando saímos, se estamos sozinhas, se saímos durante a semana, se só temos amigas mulheres, se estamos com estranhos, se queremos sexo casual, se estamos em grupo, se estamos num grupo de estranhos, se está escuro, se aquela é uma área afastada, se temos coisas caras na bolsa, se nossa bolsa é cara, se temos bateria o suficiente no celular, se nosso celular é caro. Temos que nos preocupar sobre o tipo de jóias que usamos, sobre que horas são, sobre que rua é, sobre qual é o ambiente, sobre com quantas pessoas você dorme, com qual tipo de pessoa você dorme, quem são seus amigos, para quem você dá o seu número de telefone, quem está por perto quando o entregador de pizza chega. Temos que nos preocupar sobre conseguir um apartamento onde você pode ver quem está na porta antes que te vejam, sobre checar antes de abrir a porta ao cara da pizza, sobre ter um cachorro bravo, sobre tratar bem todos os seus vizinhos, sobre deixar telefones para contato quando for viajar, sobre ter um colega de quarto, sobre fazer aulas de defesa pessoal, sobre sempre estar alerta, sempre prestar atenção, sempre olhar para os lados e nunca relaxar por um momento sequer. Caso você seja estuprada e não tenha seguido todas as regras acima, a culpa é sua.

Mina Vieira.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Metrópole.


Minha cabeça dói. Aos poucos vou tentando abrir os olhos e me lembrar do que aconteceu ontem. Continuo parada, tenho medo de foder ainda mais a minha dor de cabeça se tentar me mexer. Porra, não lembro o que eu fiz ontem. Nunca esqueço das coisas... devo ter tomado alguma coisa muito doida. Finalmente abro os olhos e começo a tentar descobrir se é dia ou noite, se eu tenho que trabalhar ou se é domingo. A claridade que vem do teto me incomoda, meu hálito também. Tem um cheiro tão ruim saindo da minha boca que parece que vai durar pra sempre. Mau hálito eterno. Meus lençóis fedem tanto quanto a minha boca, talvez mais. Alguma coisa nojenta deve ter acontecido nessa cama. Apesar do nojo, desisto de tentar levantar. Afinal, seja dia ou noite, é tudo sempre uma merda. Estou sozinha nessa casa e nessa cidade que eu não entendo, andando por ruas que me confundem, comendo comida de procedência desconhecida, explodindo de dor de cabeça enquanto alguma coisa interessante tem que estar acontecendo no mundo lá fora. Minha casa está uma bagunça, sempre está. Mas me sinto feliz por pelo menos estar aqui. Sei que na cozinha tem a bebida que eu quiser. Porque não importa o quanto o meu salário seja curto, o dinheiro das bebidas precisa ser respeitado. Afinal, são elas que me fazem esquecer que meu salário é curto. Tem cerveja na geladeira, tem umas garrafas de uísque pela metade espalhadas pela sala, tem uns vinhos guardados, tem pinga também. Nem a ideia de um novo porre parece me curar. E eu nem sei porque tô assim. Talvez eu precise do que me deixou desmemoriada, da droga mágica que me fez esquecer tudo. Não sei onde conseguir drogas nessa cidade estranha. Não tenho o telefone de ninguém que saiba e não tenho carro pra sair andando por aí até encontrar. Mesmo que tivesse, não teria grana. Posso trocar um mês de comida por uns gramas de cocaína, mas nunca fui de pó. Podia sair procurando alguém pra trepar comigo. Lá onde eu morava tinha um cara que sempre me ajudava. Curava minhas tristezas, minhas crises, minhas ressacas, minhas dores de cabeça, minha eterna falta de dinheiro, meus problemas no trabalho, minhas frustrações mais imbecis e até mesmo esses meus surtos degradantes. Com um orgasmo só. Às vezes dois ou três, só por esporte, mas unzinho era capaz de mandar tudo embora. Mesmo que eu voltasse pra lá, ele não me curaria. Parece que vai casar, não sei. Engravidou uma menina aí e agora vai ter que ser rapaz direito. Só me resta rir. Queria uma prostituta qualquer, sei lá, mas não sei como essas coisas funcionam e também tô sem um puto na carteira. Vai ver entrei nessa loucura toda de agora porque ontem consegui alguém, finalmente. É muito difícil conseguir pessoas aqui e eu aposto que fiz merda, eu sempre faço. Olho no relógio e os números me fazem lembrar que meu ônibus vai passar em menos de 30 minutos e eu preciso trabalhar. Não lembro onde trabalho, caralho. Melhor ficar em casa e esperar até que as coisas voltem ao normal. Talvez eu ligue pra minha mãe.

Mina Vieira.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Denise.

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Eu tinha acabado de sair de um show no dia em que conheci Denise. Eu estava meio bêbada e precisava pegar o ônibus pra voltar pra casa. Sentada na calçada, eu me esforçava pra manter os olhos abertos e conseguir ler os nomes das linhas. Nem sempre funcionava. Maquiagem toda borrada, cabelos sujos e emaranhados, pés metidos na sarjeta cheia d'água e já esperando a dor de cabeça e os possíveis vômitos do dia seguinte. Denise apareceu quando voltei de um dos meus cochilos. Vinha lá do final da rua, estava tudo escuro, acho que só a vi quando estava já bem perto. Não tinha cara de quem precisava pegar ônibus. Parecia que tinha descido do seu carro e andado até mim só pra se vingar de algum amor mal acertado, só pra me bater até que sua raiva passasse e ninguém nunca ficaria sabendo. Eu morreria ali mesmo com um monte de sangue seco grudado na cara e Denise voltaria a ser feliz. Devia ter uns 7 ou 8 anos a mais que eu, mas mesmo assim sentou na calçada do meu lado e começou a puxar papo. Minha língua de bêbado não se movimentava da forma como eu gostaria, o álcool a tinha adormecido e eu me sentia falando muito devagar, uma idiota. Sentia que babava demais, não conseguia usar frases muito longas e sempre tinha que voltar pra corrigir as palavras. Denise, muito paciente, insistia. Perguntou meu nome, o que eu fazia, de onde eu vinha, do que gostava... esses papos bestas. Eu já tinha desistido de agir normalmente depois de umas 4 perguntas. Só olhava fixamente aqueles peitos gigantes apertados dentro de um vestido azul clarinho. Eu sempre costumava dizer que só era fascinada por peitões porque tinha peitinhos. Mentira. Era fascinada por eles porque são lindos e gostosos e ficam deliciosos apertados em vestidinhos minúsculos. Ela estava sentada de pernas abertas, a rua toda podia ver sua calcinha. Eu não me importava com isso, mal sentia vontade de ver sua calcinha. Babava hipotizada por um maldito par de peitos. Acho que ela percebeu, qualquer um perceberia. Depois disso, eu decidi ser sincera com ela. Estava doida para experimentar uma mulher já fazia tempo, estava bêbada, não a conhecia, ela também parecia querer, ninguém passava na rua. Então eu disse pra ela, eu disse que naquele momento a única coisa que me parecia sensata era chupar seus peitos. Provavelmente, era a única coisa que meu estado de embriaguez me permitiria fazer. Ela riu, não me levou a sério. Eu disse que só isso me ajudaria a ficar um pouquinho sóbria pra voltar pra casa em segurança. Ela pirou, acho que queria mesmo me ver sóbria. De repente assumiu uma postura estranha de mãe e quis me ajudar. Mexeu um pouco nos meus cabelos e puxou minha cabeça com força, me deu um beijo ruim. Eu não sabia que mulheres podiam ser capazes de beijar assim, tão rudes. Então eu decidi retribuir a violência e agarrei seu seio esquerdo com força, espremendo aquela carne molenga entre os dedos, meio querendo que estourasse. Ela também não deve ter gostado. Foda-se, eu mal me lembrava que ela estava ali. Abaixei a alça daquele vestido que certamente era menor que o tamanho dela e devo ter perdido alguns bons minutos com a boca naquilo, fazendo tudo errado. Denise queria deitar na calçada cheia de insetos e peças de lixo que eu não conseguia identificar. Eu tinha nojo e não queria mais nada dela além dos peitos. No máximo, talvez, juntar os meus humildes com toda a pretensão dos dela, mas não mais que isso. Meu ônibus passou, eu dei um gritinho, já estava doida pra fugir. Ela disse que me deixava em casa, não tinha problema, o carro dela estava estacionado a poucos quarteirões dali. Eu sabia que ela tinha me escolhido, sabia que era de propósito. Recusei e fui embora a pé, cambaleando. Às vezes eu me arrependo de não ter conhecido melhor aquele corpo, de não ter lambido e violado todos aqueles orifícios tão ricos ali mesmo no meio da rua. Sempre que fico tonta de álcool penso em Denise. Ela me curou. Não peguei em outros peitos além dos dela e dos meus, tenho vontade sempre. Às vezes sonho que contrato prostitutas lindíssimas e de peitos tão grandes quanto os dela, acordo molhada. Às vezes ligo pras minhas amigas que ainda não saíram da adolescência e estão dispostas a fazer qualquer loucuragem. Nunca acontece.

Mina Vieira.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Motivo.

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Meses atrás eu te disse que queria ter coragem de segurar o teu queixo bem perto da minha cara e te falar verdades enquanto você ficaria progressivamente bêbado com o meu hálito. Não te disse nada, deixei passar. Você sumiu e nunca ouviu nenhuma das verdades que eu tinha pra te dizer, mas eu fiz pior. Enquanto você ia sumindo, eu fui achando outras pessoas. Fui indo a diferentes bares e olhando em volta pensando que dessa vez era hora de começar a analisar as opções. Uma merda esse texto de recém-solteiro, não? Mas foi o que fiz. Comecei a usar calcinhas novas e provocantes sempre que saía, comecei a usar todas as toneladas de maquiagem que você não gostava que eu usasse enquanto estávamos juntos, comecei a usar salto alto porque agora não tinha que me preocupar com a sua altura. Talvez tivesse sido melhor dizer logo que eu começava a te achar um cara dos mais insuportáveis e que não estava a fim de te ver, mesmo. Daí esse cara novo veio com um pau que não era o seu, com um carro que não era o seu, com umas manias que não eram as suas, com uns perfumes baratos que nunca chegaram perto de ser aquela sua ausência deliciosa de perfumes. Achei um barato. Trepávamos feito loucos, o tempo todo. Ele não era assim tão bom de cama. Tinha umas travas chatas, umas preocupações infantis que não cabiam no meu mundo já há bons anos. Tinha um pau torto pra esquerda do qual eu não gostava, tinha um peito liso de doer os olhos e uma voz mansa mansa, sono. Mas trepávamos mesmo assim, porque você sabe que eu nunca fui do tipo que acredita em magia de primeira transa, eu tinha paciência o suficiente pra tentar até ficar bom. Mas nunca ficava. Três meses de sexo quase que diário e eu não gozava, não gostava, não queria mais. Foi o fim. Pensei que eu devesse experimentar todos os paus do mundo e todas as manias sexuas ridículas antes de te pedir pra voltar, mas deu preguiça. Deu preguiça de sair pelo mundo procurando macho enquanto eu sei que com você meus mamilos são eternamente duros e que teu pau nunca deixa de reagir quando minha mão o encontra. Aí aquelas verdades todas foram por água a baixo. Te chamei pra esse jantar, vou me oferecer pra pagar a conta, vou te chamar pra subir as escadas e vou esfregar minha bunda em você enquanto estivermos no elevador. Se você quiser, claro. Quer? Não importa. Só quero que você testemunhe o meu fracasso, a minha incapacidade de viver sem os teus fluidos, sem o teu jeito animal. Te chamei pra me render, pra dizer que tô disponível e te esperando e que não importa o quão insuportável e cansativo você seja de vez em quando, trepar com você sempre me faz esquecer. E eu preciso tanto esquecer. Preciso ser domada. Meus vibradores e minhas mulheres e meus dedos e minhas bebidas e os cacetes que a minha carteira pode comprar não fazem isso por mim. Ninguém me cala, ninguém me faz bater a mão na cara, desesperada, como você fez tantas vezes. Ninguém tem esse teu pau estranho que encaixa daquele jeito delicioso lá no fundo da minha garganta. Mentira, alguém deve ter... alguém lá na Finlândia ou um esquimó bem branquinho, mas eu quero agora. Quero hoje, se possível em cima dessa mesa e do lado da comida que a gente ainda nem pediu. Quer comer? Eu tô sem fome. Tá tudo bem claro pra você? Espero que seu ego esteja bastante contente e espero que você me recompense antes de irmos pra casa. Eu posso não merecer, mas você seria o maior dos ingratos se me negasse sexo.

Mina Vieira.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Esclarecimento.

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Todos os textos postados até agora foram escritos entre 2007 e 2010 e já haviam sido postados previamente num outro blog que eu tinha, com exceção de Eu costumo empregar a palavra 'fabuloso', Das coisas que a gente nunca diz, A louca e Quero. Todos os textos, a partir de agora, serão inéditos.

Para elogios/críticas, avisos sobre erros que escaparam da revisão, sugestões e blá blá blá, divirtam-se nos comentários ou em mina.vieira@hotmail.com.

Eu costumo empregar a palavra 'fabuloso'.

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Eu queria ter você o tempo todo para ouvir Dylan comigo, pra eu esfregar minhas meias exageradamente compridas nas suas pernas peludas. Queria te mostrar como eu sorrio quando ouço qualquer música que me lembra você ou quando sinto seu cheiro de pele grudado na minha. Acordar cedo com você é QUASE bom, porque perder tempo de olhos fechados quando se tem uma coisa preciosa como você do lado é burrice. Acordar com você ocupando toda a cama não me irrita e acordar no susto porque levei uma mãozada irrita menos ainda. Você me pacifica, você acalma todas as ondas gigantes que ameaçam sair de dentro de mim e desolar cidades, pôr lares abaixo. Você me faz ser tudo que eu sempre ensaiei pra ser, você me faz grande, você é o cara que diz "vai, pula!" e eu pulo. Por você, eu fecho os olhos e agradeço. Se houvesse um Deus, se eu acreditasse em alguma divindade, eu rezaria pra você nunca ir embora, pra você ficar cada vez mais perto. E se a minha reza falhasse, se a minha dinvindade não fosse poderosa o bastante e você fosse embora, eu rezaria pra mal nenhum nunca te atingir, pra você ser blindado pra sempre. Talvez você seja o meu NIRVANA, o ápice de tudo; talvez meu momento de maior completude seja você. Talvez você seja a paz, o oficial que se negaria a lançar a bomba atômica. Ou pode ser que você seja Hiroshima devastada, mas é em você que eu moro. Não importa a radiação, a fome ou a nudez dos meninos na rua, é em você que eu quero morar. É do seu lado que eu quero ficar quando a 3ª Guerra começar. Quero chorar vendo você, fardado, ir embora e preparar suas malas e comprar roupas bem grossas pra te proteger do frio. Eu quero te aquecer nas trincheiras, ser a foto dentro do camafeu que você vai levar. Estar com você, até o inferno.

Mina Vieira.

T., que mais tarde revelou se chamar Tatiane.

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T. era a garota mais apaixonante do mundo.

T. tinha as orelhas geladas a qualquer hora do dia e em qualquer dia do mês para todos os dedos aflitos que as quisessem tocar. Tinha cheiros de maracujá e de outras dessas frutas que não costumamos comer todos os dias espalhados pelo seu corpo, debaixo de suas saias, entre seus dedos, dentro de seus olhos, na ponta de sua língua. T. tinha mãos de fada de dedos longos e unhas quadradas sempre limpas e talvez pintadas com cores diurnas e felizes. Tinha borboletas na garganta para libertá-las junto com o surpreendente tom de sua voz e folhas de hortelã presas entre os dentes esperando para entrar em ação quando ela decidisse falar. T. movia as pernas de forma estranha: uma de cada vez, com o ritmo marcado pelo balanço brutal de seus quadris que derrubavam um exército com cada um de seus movimentos.

T. tanto matou de amores que um dia acabou morrendo.
T. morreu de tanto fazer amar.

Mina Vieira.

Com afeto.

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Ele tem um jeito de me mover a ponto de eu não saber para que lado pender por medo mais de outro do que dele mesmo. Ele tem esse jeito inofensivo de cachorro depois da chuva que me faz não ter medo de uma apoximação, mas que ao mesmo tempo me constrói labirintos no cérebro e nuves nas poucas certezas.

Ele tem esse jeito de me fazer saber que, mesmo não sendo total culpa dele, vai ser igual. Ele vai me surpreender com todos os seus ares e vai me fazer acreditar, talvez sem querer, que dessa vez vai dar certo. Mas então vai ser impossível e nos conteremos no começo para parecermos adultos sensatos, mas em poucos meses fracassaremos e faremos promessas que eu, pelo menos, saberei sempre que não vou conseguir cumprir e saberei disso desde o começo, desde o nascimento dessas promessas.

Não será culpa dele, mas por algum tempo eu vou pensar que toda a frieza e distância e o jeito de homem que não liga é tudo o que eu quero para a vida e vou me sentir feliz enquanto achar que vai ser para sempre. E então que as pessoas mudam e ele não é de ferro, por mais que pareça ser, e vai mudar também, vai deixar de se aproximar da perfeição para começar a me irritar com todas as suas tentativas de agrado.

Eu sei, eu sempre sei que é assim e que minha insatisfação não tem nada a ver nem com ele e nem com qualquer outra pessoa além de mim, mas me cabe às vezes acreditar, por alguns poucos minutos, numa chance. Eu posso ferver por alguns meses e me permitir uma leve empolgação. Tudo bem trocar algumas palavras e deixá-lo perceber que eu quero/quis e penso nele, claro, mas agora não. Agora temos outros planos, eu e ele, e eu não acredito mais nessas coisas de amar bonito e para sempre.

Mina Vieira.

Nós, continuando a ser mulheres.

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Eu acho que sou especial. Eu acho que fui especialmente escolhida num mar de pessoas para serem infernizadas. Eu acho que eu sou diferente e que tenho algo mais a oferecer que as outras garotas com a pouca idade que eu tenho. Eu acho que o que te atrai é essa mistura de menina inocência com toda a minha maturidade e meus ataques de responsabilidade. Eu acho que você se surpreende com o fato de conseguir manter conversas incrivelmente longas comigo mesmo sabendo da distância toda que existe entre nós. Cronológica e mental, apenas distância. Eu acho que você se assusta com o fato de eu suportar tão bem todos os seus silêncios e todos os seus comentários soturnos sobre as coisas mais ingênuas. Eu acho que você se apavora com a minha falta de pretensão e se sente perdendo, se sente menos admirado do que deveria ser. Eu acho que você acha que me deve satisfações sobre o seu passado e sobre todo o resto, mas no final eu já sei o que de pior poderia saber e isso é o suficiente.

Eu acho que valho menos que uma mulher bonita qualquer que você encontra na padaria de manhã. Eu acho que eu sou menos importante que qualquer um dos seus outros problemas, apesar de inevitavelmente ser o maior deles. Eu acho que você se importa tão pouco a ponto de só lembrar de mim bem tarde, quando estiver saindo do trabalho e quando suas costas estiverem doendo tanto que você precise ligar pra alguém pra dizer caralho, tá doendo demais. Eu acho que não tenho chances de ser algo mais que a sua garota de sexta-feira e acho que não quero ser mais. Eu acho que te causo algum tipo de conforto muito estranho, mas bom a ponto de você não conseguir se livrar disso. Eu acho que nós dois somos putos egoístas numa eterna batalha de tentar provar que somos muito capazes de não nos envolvermos sentimentalmente, obrigada. Eu acho que isso tudo vai terminar mal e eu acho mesmo que você não se importa.

Mina Vieira.

Pedido.

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Somos todos enormes filhos da puta com preguiça de escrever. Somos pequenos mosquitos de banheiro que vivem, mas cuja a vida é tão facilmente destruída que seria mais fácil não nascer. Somos esperadores. Esperamos que a nossa falta de consideração com as pessoas ao nosso redor seja disfarçada pela consideração excessiva de algumas pessoas um pouco mais iluminadas. Esperamos que alguém escreva tanto e tão bem que as pessoas que costumam ler o que você escreve não sintam falta das suas palavras. Esperamos que alguém nos substitua, que alguém seja capaz de esconder o nosso nunca estar presente. Nós, como bons esperadores que somos, culpamos os que o são tanto quanto nós. Culpamos os outros quando lhes faltam palavras e a medida certa, quando lhes faltam versos esperados por madrugadas inteiras, quando são tão poucos que não saciam fome alguma. Somos grandes filhos da puta cheios de esperança. Queremos que vocês façam o que não fazemos. Queremos que vocês nos distraiam maravilhosamente com prosa ou verso e que isso aconteça todos os dias, mesmo que em doses pequenas. Queremos que vocês escrevam.

Mina Vieira.

Nós, as mulheres.

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A gente aprende a se contentar com os telefonemas apressados e obrigatórios de meio de caminho. A gente aprende a conviver com os horários estranhos e incômodos, porque é assim e só assim que pode ser. A gente entende o fato de ver fotos de outras pessoas onde deveria estar a nossa e aprende, mais tarde, a fingir que nunca nem chegou perto de ver qualquer coisa do tipo. A gente aprende a fingir rápido demais, por falar nisso. A gente aprende a fingir que tudo bem se submeter a isso e que tudo bem saber que os interesses do outro são tão desprezíveis e baixos quanto os seus. A gente aprende a fazer manha de leve, de um jeito bem sutil que não pareça cobrança e que talvez não faça o outro mudar de idéia, mas que o faça se arrepender assim que chegar em casa. A gente aprende a se empenhar para ser a compania mais agradábel que alguém pode ser, deixando de lado qualquer capricho infantil difícil demais de atender. E então a gente entende que tem que haver alguma maturidade no meio de tanta inconsequência e tenta fingir que é mais maduro do que realmente é. A gente finge que não espera, que não pensa, que não se preocupa. A gente entende que é isso que o outro quer e ele sempre deixou bem claro, então só nos cabe concordar ou dizer não. A gente se engana dizendo que não há ilusão ou pequenas promessas e que, mesmo que houvesse, a gente não ouviria. A gente interpreta racionalmente tudo o que vê e não pede coisas irrealizáveis. A gente pensa com clareza e não faz nada devagar demais para não se entregar à ternura e não perceber que existe um problema. A gente mente o tempo todo.

Mina Vieira.

Super.

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Você está estupidamente parado olhando para os olhos dela. Você umedece os lábios, às vezes, e os dois sabem que você implora. Você implora para que um beijo aconteça, para que ela se aproxime e destrua sua boca com alguma língua doce e afiada que não parece pertencer ao corpo inofensivo que você acha conhecer tão bem. Você nem implora para que seja um beijo, você se contentaria com um abraço, um aperto de mão, um olhar. E você se acha grande e forte o bastante para suportar todo o veneno que será inoculado em você. Você abre os braços para levar o tiro bem no meio do peito, para mostrar que ela pode até ser inevitavelmente o personagem principal da cena, mas que você tem tanto talento quanto ela. Você faz com que ela confie em você, porque ela te avisa. Ela diz que vai doer e diz que pode ir embora a qualquer momento, mas você faz questão de convencê-la de que isso é bobagem e que, mesmo que aconteça, não é uma coisa dessas que vai te matar.

Depois vocês ficam tão juntos quanto você queria. Vocês se tornam um e ela é a coisa que te dá forças, ela é o seu motivo, ela é tudo o que você é capaz de ter na vida. E não pode ser assim. Ela te mostrou as condições. Ela jogou limpo quando disse que era fêmea e que isso lhe dava permissão para ir embora, para ser transitória. Ela te pediu para não deixá-la ser importante pra você, ela queria algo leve, algo que não custasse a vida dos dois. Então ela diz que te ama, porque ela não mente. Mas... mas você começa a implorar. Você começa a afogar seus olhos, você segura as mãos dela com mais força e todo o discurso que ela havia preparado vai embora. Ela pensa em desculpas sutis e acolchoadas, mas não consegue. Mas... mas você é submisso demais. Mas você a queria por inteiro, enquanto ela podia te oferecer apenas um pedacinho de cada vez. Mas você pediu pra cair. Mas você entregou sua vida nas mãos de uma vilã, alguém de unhas tão afiadas que arranharia até a mais rígida das superfícies. Mas ela não pode estar com alguém assim.

E ela vai embora tão resplandecente quanto chegou. Ela vai pisando o asfalto com toda a segurança que lhe é exigida. Ela desaparece enquanto você fica sangrando, sangrando, sangrando e gritando por quê?. Ela não gosta da cena, é por isso que ela vai embora tão rápido. Ela corre apenas para não te ver definhando, para que você não veja que ela também chora. Ela vai embora porque esse é o seu papel.

Mina Vieira.

O que eu faço de melhor.

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Já provaram que pra falar de amor não é necessário um Português dos mais corretos. Pra falar de amor, na verdade, não se precisa de nada, digamos, correto. Não se precisa de quase nada, além de um pouco de disposição e algumas rachaduras no coração. Para falar de amor não é necessário estar amando, não é necessário estar com alguém, não é necessário estar sofrendo de solidão ou abandono.

Falar de amor a gente fala sem ensaios. A gente junta as palavras e as cenas vistas num certo período a gosto do escritor e as organiza de forma poética, de forma boa de ouvir. Pra falar de amor a gente transforma atos pueris - como cair no banheiro, arrumar o cabelo desta ou daquela maneira, escolher a cor do esmalte - em acontecimentos sofridos e marcantes. A gente inunda o mundo com lágrimas de crocodilo, coloca no papel e espera que acreditem. Falar de amor não tem mistério. Não precisa entender do assunto, não precisa ser vivido e muito menos simpatizar com o estado de amar, é só escrever. É só colocar palavras bonitas como flor, especial, chorar, sonho, inesquecível e pensar numa pessoa, a pessoa que naquele momento pareça ser a mais especial do mundo, a flor azul do seu jardim secreto, o motivo de toda e qualquer ameaça de chorar, a pessoa inesquecível sobre a qual você vai contar pro seu marido quando os dois estiverem velhinhos.

Para falar de amor basta exagerar, basta deixar de lado todo o bom senso e todas as medidas, todos os limites. Falar de amor não exige nenhum sacrifício mortal, não é enfiar a unha na carne, atingir o coração e percorrer seus labirintos com os dedos até encontrar as palavras. Falar de amor é repetir o que outros já disseram, de forma mais ou menos sincera. Falar de amor é deixar de lado, às vezes. Deixar de lado algumas reservas, ignorar algumas contenções e se desnudar. Desde que isso não seja sacrifício, desde que esteja tudo bem em estar nu. Falar de amor é concordar com si mesmo, é despejar as palavras com facilidade, fazê-lo como quem toma banho frio num dia amarelo de verão.

Você pode falar dos pés do seu amado ou pode falar de quanto mal lhe foi feito. Você pode falar bem ou falar mal, você pode demonstrar o quanto ainda ama ofendendo o objeto de amor, pode falar que ama sem falar a que, pode ser subjetivo e enganar a todos, pode ser como a canela, que se esconde entre todos os outros temperos mas sempre nos faz perceber que está ali. Mas você não pode deixar de falar. Falar de amor é mais importante que ter filhos, escrever livros ou plantar árvores. É mais importante que salvar a Floresta Amazônica, é mais importante que a retirada das tropas americanas do Iraque, é mais importante que virar vegetariano e salvar o animais, é mais importante que a independência do Tibet, a renúncia de Fidel Castro ou a dengue no Rio de Janeiro, é mais importante que não jogar lixo na rua. Falar de amor é vital.

Falar de amor, apesar de tudo, não vale tanto. Não vale pois se pode falar de amor sem estar amando. Pode-se falar que ama sem realmente amar e há quem faça isso muito bem, vocês sabem. Não se iludam com simples palavras bonitas e bem arranjadas, com um bom dia de um bom escritor, com um surto criativo de um adolescente, com os resultados de uma ingestão de ópio, com as considerações de um homem de meia idade que teve um dia difícil. Não se iludam nem mesmo com a música mais bonita e mais triste do mundo, pois quase nunca há nela toda a poesia que enxergamos. Não se iludam comigo, principalmente. Não se iludam com o meu jeito seguro e entendido de falar sobre falar de amor, porque é quase tudo casca, é quase tudo tão descartável quanto amar.

Mina Vieira.

A coisa certa. (ou Como escapar de um relacionamento em 15 dias.)

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Você me pede pra não sentir culpa ou medo. Eu entendo. E eu não penso que isso seja algum tipo de vingança. Isso nunca me passou pela cabeça e mesmo quando eu ouvia de outras pessoas, eu nunca acreditei que isso fosse possível. Porque você não é do tipo de pessoa que faz isso. Você, aliás, é do tipo de pessoa com a qual eu acho que não mereço me relacionar. Não por ser bom demais para mim e não que não seja, mas só por ser tão verdadeiro e tão puro que eu sei que cedo ou tarde vou acabar machucando. Porque machucar as pessoas é a minha especialidade, você sabe. E eu não queria que isso acontecesse com você, mas também não queria que você fosse privado de tudo de bom que eu posso fazer por você, porque eu também sei fazer coisas muito boas.

E agora eu ando funcionando num ritmo muito estranho. Eu venho fugido diariamente de responsabilidades românticas, porque de repente percebi que não estou pronto para isso. Eu, definitivamente, não estou pronta pra ser o tudo de pessoa alguma. Eu posso estar com você, eu posso te divertir, eu posso te dizer coisas bonitas, eu posso pensar em você diariamente e com uma intensidade absurda, mas eu tenho medo de não poder te manter feliz por muito tempo. E eu tenho mais medo ainda de estragar alguma coisa, de estragar essa coisa que existe entre a gente, porque existe algo e é algo muito bom.

Gostaria que pudéssemos ficar escorregando assim por mais um tempo. Gostaria de gostar de você como eu gosto, com essa falta de responsabilidade e de compromisso que eu gosto agora. Gostaria que você também gostasse de mim assim, por muito tempo. E gostaria muito de acreditar que você não vai me odiar quando acabar, porque não dá pra pensar no agora sem pensar no depois de agora. Eu gostaria de ter certeza que você vai ser grato, não importa o que aconteça. Grato como eu sou a todos que já passaram por mim, todos que modificaram algo em algum lugar de mim. Todos, todos, todos. Por mais rápidos ou insignificantes que tenham sido, sou grata a todos elas.

Que saibamos fazer as coisas certas.

Mina Vieira.

Muito mais.

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Amor... De novo. Eu posso escrever milhares de textos diários sobre o amor. Buscar definições conclusivas e impactantes sobre o amor, dizer coisas que façam vocês pensarem em como eu entendo do mundo e em como minhas palavras tocam fundo a ponto de você sentir vontade de anotá-las. Em último caso, posso tornar-me o escárnio em pessoa e apenas dizer o quanto é simplório e pobre falar de amor, mas não hoje. Hoje estou apaixonada.


Hoje estou sentindo um daqueles amores que não sangram, um daqueles que te fazem ver coisas estranhas e desconexas quando fecha os olhos, um daqueles que nascem pedindo metáforas. Você ama alguém assim e quer falar disso, então fecha os olhos buscando as metáforas pedidas e elas piscam na sua testa, por dentro. Piscam rápido e pela metade, mas estão lá. Então, você tenta organizá-las.

Esse é o amor que me faz ver poças d'água, porque elas me lembram o frescor da varanda do meu pai, de uma época antiga na qual eu ainda tinha um pai. Talvez a poça apareça por causa de Ferreira Gullar que me chegou pelas mãos do motivo desse amor de hoje. Por amar, estou sentindo algo que sinto quando está frio e me exponho aos raios de sol. Aquele calor confortável que penetra pelas roupas e vai te aquecendo aos pouquinhos, até que fica quente demais e você volta para a sombra. Meu amor está apenas começando a aquecer e, quando eu for pra sombra, iremos. Amar hoje está fácil demais, por isso não comove. Comoveria se eu falasse de gritos e arranhões e tristezas profundas, mas hoje não. Hoje é como atravessar a rua, à noite, de pijamas. Você faz e se sente bem com isso. Você atravessa a rua sorrindo, porque aquilo é realmente libertador. E não é errado, mas também não chega a ser muito certo. E é nessa categoria de coisas - as nem erradas e nem certas, mas que você sabe que não pode fazer - que se encontra o amor de hoje.

E por hoje, pelo sentimento, por agora e por você, gastarei a minha metáfora mais bonita e sincera sobre amor. Por você, então aproveite muito bem. O amor de hoje é como sorvete de leite Ninho no café da manhã de um dia que você acorda cedo. E eu já fiz isso, já acordei cedinho e enchi a cara de sorvete, sem medo de ser feliz. E foi bom. Foi tão bom que eu uso isso para falar de você. Aquele gosto docinho se espalhando pela boca, o gelado correndo pela garganta e a sensação deliciosa de estar inocentemente quebrando as regras. Como quando a gente ama.

Mina Vieira.

Juízo Final.

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Eterna e cheia de véus possuidora das minúsculas coisas que tanto te seduzem. Doninha de todos os detalhes enlouquecedores que você, até pouco tempo atrás, julgava só existirem nos seus mais insanos sonhos. Ela guarda todos eles e não faz questão de escondê-los. Tudo o que é necessário fazer para encontrar tais detalhes, para ter o prazer de contemplar todas aquelas sutis e tão raras belezas é pedir. Pedir com algum olhar de quem há tempos perdeu o orgulho e a vergonha, pedir quase como quem suplica mas ainda faz questão de manter uma dose mínima de integridade, não sabe-se por quê.

Não, ela não é bonita e antes que você venha levantar a voz e dizer que assim está tudo errado, eu digo que assim está tudo muito certo e que você não me venha teimar com isso, entendido? Ela seria bonita, se você quisesse, se você buscasse, se você sonhasse com uma loira de coxas grossas e boca vulgar, ela o seria. Ela poderia se tornar a mulher mais desejada de todos os bares do mundo, mas isso não faz parte de suas preferências mais bem protegidas. Não, não.

Apesar de tudo isso, ela te fascina. Fascinação. Palavra mais mal usada de toda a história das palavras mal usadas, mas acho que é mais ou menos isso que ela faz com você. Ela é daquelas que nunca parecem ter nada de mais, plus nenhum, mas é capaz de fazer você se afogar e afogar nos perigos que ela oferece. Ela pertence a um tipo que seus amigos nunca entenderão, não importa o quanto você explique. Ela será sempre coberta por um manto de invisibilidade vencido apenas por você. Por trás do manto, todos os encantos esperando, prontinhos para desabrochar bem diante dos seus olhos.

Primeiro você vai se apaixonar por um pescoço quase fora do comum, mas tão inútil quanto quase todos os outros pescoços que você já tocou na vida. O dela pode ter lá o seu charme e não há quem negará, mas aquele cilindro revestido de seda pura não será a sua perdição. Ainda não. Caminhos diáfanos enxarcados de sangue até poderão te distrair por alguns minutos, mas quem consegue se apaixonar eternamente por aquela estrutura imóvel e que oferece pouquíssimas possibilidades de interação? Você não consegue, aposto que não.

Depois, um jeito estranho de mover as mãos. Isso sim vai destruir sua vida, de um jeito ou de outro. Você conhecerá dias em que comer será a mais desnecessária das suas obrigações, apenas pelo torpor que aqueles movimentos causam. Sua fome desaparecerá, seu sono já tão escasso e tão improdutivo passará a não existir, seus olhos logo se tornarão esferas avermelhadas e ineficientes, sua respiração passará a ser entrecortada por pequenos soluços e suas caminhadas serão resumidas a tombos cinematográficos e desajeitadamente cómicos. E por quê, Deus? Por que a sua vida ficou tão difícil, por que viver é tão pesado, por que tudo dói tanto e por que tudo de bom demora tanto a acontecer? O jeito como ela move as mãos grandes demais e de dedos finos demais e frágeis demais, mãos beija-flor. Por isso, por essas pequenosidades.

A partir daí, tudo será pior. Ela será sua e estará em seus braços sempre que precisar, mas não seja estúpido a ponto de pensar que isso proporcionará algum alívio. Você será feliz por poder pedir a ela que segure suas mãos e guie seus dedos até aquele ponto na barriga dela em que dá pra sentir uma espécie de pulsação enérgica que vocês dois acreditam que esteja relacionada ao coração dela. E ela dirá, em todas as vezes, que você pode ouvir o coração dela pela barriga, aqui ó, uns dois dedos à esquerda do umbigo. Ela fingirá que não foi você quem pediu, fingirá que aquilo é algo surpreendente para você, sem nem pensar no fato de ser a trigésima vez naquela mesma semana. E quem mais faz isso? E quem mais se orgulha de uma anomalia dessa espécie, e quem mais usará isso para te seduzir, e quem mais, além dela, te apresentará esses e outros mistérios sem exigir nada maior que a sua vida?

Em dias seguintes você segurará com força duas mãos das mais quebrantáveis já vistas e observará, absorto, as unhas coloridas daquele anjo fácil. Passará as pontas de seus dedos mal cuidados sobre uma superfície tão lisa quanto quase todo o resto daquele corpo. Repetirá esses movimentos por horas e dirá, com a voz meio presa na garganta, que aquilo é perfeito, que aquilo é o que te faz amá-la. Logo você se irritará, ao mesmo tempo em que fica mais apaixonado, com as risadas despreocupadas que ela deixa escapar quando você se sente frustrado por ter feito alguma coisa errada. Tal capacidade de ignorar por completo as suas preocupações o fará odiá-la por alguns segundos, apenas o suficiente para você se sentir culpado e pedir uma coisa, uma das coisas mais lindas que você sabe que ela tem para te oferecer.

Neste momento, você vai se lembrar de uma foto qualquer em que ela estava sentada em posição de lótus, com os pés em cima dos joelhos e olhando para frente como quem possui ótimos motivos para fazê-lo. Pedirá, então, que ela se sente assim para que você fique olhando. Ela estará nua e dirá que não sabe fazer aquilo, que você está louco e que não tem nenhuma foto assim. Mas logo começará a rir e, nua, respirará fundo e realizará seu desejo. Depositará gentilmente o pé direito sobre o joelho esquerdo e vice-versa, enquanto você entra em transe. Ela aproveita os seus olhos fechados e esvai-se. Sim, esvai-se. Escoa, dissipa, esvaece, evapora, desfalece, desaparece, sobe aos céus. Num surto de neblina, levita até transcender as barreiras de concreto ou os seus pedidos tolos. A cama molhada, o clarão mal direcionado... sobe aos céus.

E você pensa em como ela era linda de calça jeans e sutiã verde se olhando no espelho. E você pensa no quanto a voz aguda dela te faz falta e no quanto ela era boa quando falava de Cuba e no quanto os olhos dela brilhavam quando surgia alguma oportunidade para falar sobre tudo o que aprendera. Você pensa no quanto gostava de beliscões e mordidas e os pequenos sarcasmos que ela depositava diariamente na sua caixinha de coisas preocupantes. Você pensa na curva da cintura dela e no quanto ela agradecia com tanta vergonha e, ao mesmo tempo, tanta despreocupação aos seus elogios. Você pensa na insignificância que tudo assumia depois que ela passava, você pensa em como subir aos céus.

Mina Vieira.

Verdades sobre o amor.

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O amor foi feito para passar na TV, foi feito para filmes da Meg Ryan, da Lindsay Lohan, da Hilary Duff e da Mandy Moore. O amor foi feito para o Bryan Adams ter algo para cantar sobre. O amor foi feito para vender CDs e filmes, o amor foi feito para ganhar dinheiro. O amor foi feito para que as fábricas de chocolate pudessem lucrar, por que o que seria dos chocolates sem as dores de amor? O amor foi feito para vender lenços de papel e papel higiênico. Diariamente, metros e mais metros. O amor foi feito para lotar os salões de beleza, para povoar as passarelas de moda, para patrocinar o surgimento de uma nova loja de roupas a cada minuto. O amor foi feito para que os psicológos fossem levados a sério, para que os psiquiatras deixassem de ser temidos, para que os antidepressivos se popularizassem, para que a fluoxetina ganhasse o mundo. O amor foi feito para justificar a Guerra do Vietnã e para perdoar a existência de certos países. O amor foi feito para disfarçar os males mais perigosos do mundo, para distrair as pessoas enquanto o mundo cai em ruína, para entreter enquanto a desgraça desce à Terra. O amor foi feito, também, para vender vodka. Para vender vodka, whisky, tequila, vinho branco, vinho tinto, vinho seco, champagne, álcool etílico, acetona, éter, maconha, heroína e LSD. O amor patrocina um assustador mercado de produtos ilícitos, o amor paga a sua morte. O amor foi feito para que as velas não sumissem do mapa, para que alguém ainda pensasse em comprá-las para acender para um santo mergulhado num copo d'água ou para um demônio de carne e osso que foi convidado para jantar. O amor foi feito para banalizar o sexo, para que as mais chocantes bizarrices fossem permitidas e aceitas. In the name of love. O amor foi feito para porcos, cabras, cavalos, cachorros, gatos e enguias. O amor foi feito para você com eles e para as cordas, os chicotes, as algemas, os separadores de perna, as coleiras e as mordaças. O amor foi feito para te permitir guardar essas coisas na gaveta e ter uma masmorra em casa. O amor foi feito para que se possa ter sexo diariamente, para que se possa amar demais, morrer de AIDS e tornar-se eterno. O amor foi feito para ser rico e mortal. O amor foi feito para Estocolmo e suicídios, foi feito para ajudar na venda de lâminas afiadíssimas e para explicar o destino dos bisturis roubados. O amor foi feito para viciar em morfina, para desequilibrar os estoques dos hospitais e para que os médicos se arrastassem pelos corredores. O amor foi feito para vender analgésicos coloridos, doces, amargos, de todos os tamanhos, eficientes, placebo, de todos os tipos. O amor foi feito para que histórias sobre ele pudessem ser contadas. Histórias boas e ruins, declarações de amor ao amor, listas de todos os seus males, com finais tristes e felizes, com mortes no final ou no começo, com lições que dizem claramente que o amor não é bom. O amor foi feito para ser assistido e para servir de inspiração para coleções. O amor foi feito para assustar o arco-íris e para destruir seu rendimento escolar. Para te fazer ser demitido, para te fazer ser advertido pelo chefe. O amor foi feito para te emburrecer, para te engordar, para te deixar careca e com a voz rouca. O amor foi feito para ser documentado no YouTube, o amor foi feito para fazer chover, o amor foi feito para vender cigarros. O amor foi feito para cuspir fumaça na sua cara diariamente, para te fazer morrer de câncer, para te fazer pensar que uma passadinha semanal num Drive-Thru do McDonald's é algo ideal para se fazer com o namorado. O amor foi feito para perdoar a imundície e a frieza dos motéis, para fazer com que cada quarto de cada motel mais sujo do mundo esteja sempre cheio e barulhento, desprezivelmente barulhento. O amor foi feito para que se permitisse gemer animalescamente sem parecer um extraterreste, o amor foi feito para que se pudesse fingir, para que se pudesse lançar, diariamente, sua dose de falsidade e seu talento cênico nunca antes revelado. O amor foi feito para vender narizes de palhaço e pipoca de microondas. O amor foi feito para salvar o leite condensado, o chantilly, os morangos e as cerejas. O amor foi feito para os prostitutas e para os loucos. O amor foi feito para que elas, as prostitutas, se dignassem a conhecer a mais bonita das artes e salvassem vidas. O amor foi feito para abrigar os loucos. O amor foi feito para as rendas, a seda e o cetim. Para o espartilho, a cinta-liga e o salto 15. O amor foi feito para o vinil e o acrílico, para o couro e o algodão. O amor foi feito para despir a adoecer. O amor foi feito para perdoar a impotência, o mau hálito, a pobreza ou os cabelos brancos. O amor foi feito para ser capitalista, o amor foi feito para matar Che Guevara.


Mina Vieira.

Manual de instruções.

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Eu andei pensando nessas coisas de tentar uma segunda, uma terceira, uma septuagésima nona vez. Eu estava pensando, agora mesmo, nessas coisas de dar chances e descumprir promessas feitas a nós mesmos num dia qualquer de fossa. Aqueles dias, que podem ser de ressaca também, em que você jura que não vai fazer aquilo de novo, nunca mais. Mas parece que isso basta. Parece que isso é o necessário para que chances de se repetir o erro primordial apareçam bem na sua frente, só pra tentar.

E quando a gente se rende, a gente sabe que tá errado. E eu nunca dei a mínima para as coisas que eu sabia que eram erradas, mas acontece que há casos em que você coloca mais que a própria cabeça em risco. E quando você já fez a cabeça de outra pessoa rolar, o medo é dobrado. Talvez não por nobreza de alma ou coração, mas por puro medo de algum tipo de punição. Ou culpa, maybe. E na septuagésima nona vez, você já aprendeu o que vai acontecer. Você poderia narrar cada dia que precede a queda, cada passo que conduz à desgraça.

Mas e daí, né? E daí se às vezes parece que vale a pena, porque as pessoas têm uma puta de uma mania de achar que tudo vale a pena por alguns segundinhos de prazer absoluto, por algum nirvana efêmero e sintético. E as pessoas se acham fortes, as pessoas se acham capazes de sentir a dor mais aguda e sobreviver, intactas. Pois sobrevivem, claro que sobrevivem. Ninguém nunca morreu de dor de amor sem a ajudinha de balas na cabeça ou cortes no pulso. As pessoas continuam vivas, mas como? Menos inteiras, menos uniformes, menos equilibradas. Mais bonitas, às vezes. Porque tem gente que se recupera e se torna mais bonito que qualquer uma das coisas mais bonitas que você já viu na vida. Como eu, da primeira vez. Como eu que no ápice dos meus 13 ou 14 ou 15 anos tive meu pobre coraçãozinho dividido em um milhão de pedacinhos. Sobrevivi e here I am, podendo dar aulas sobre como tudo acontece.

E não que isso seja grande novidade pra qualquer um que um dia for ler isso aqui, mas é que... Enfim, pointless. Mas eu escrevo mesmo assim, pra ajudar as pessoas que um dia forem escrever coisas a meu respeito, boas ou ruins. E eu penso também que ninguém decide se apaixonar pra destruir a vida da outra pessoa. Ninguém acorda e decide que vai conquistar um garotinho tímido qualquer e depois ir embora pra sempre e deixá-lo pra morrer. Nanão, né assim que a coisa funciona. As pessoas se apaixonam e se unem a outras pessoas na intenção de fazer a coisa funcionar, de fazer dar certo. Por que, se não for assim, como vai ser? O problema é que é difícil fazer funcionar. O problema é que nós todos prometemos coisas querendo cumprir, claro, mas depois fica difícil e promessas incumpridas são brutais, porque enchem a gente de vontade. O problema, o maior de todos os problemas é que eu nunca consegui.

E tendo essa certeza, a certeza de nunca antes ter conseguido, eu gostaria de avisar todas as pessoas que tentarem coisas comigo. E eu digo que nunca consegui não porque todos os relacionamentos terminaram de maneira trágica. Se fosse assim, eu pensaria que um relacionamento só dá certo quando dura pra sempre e não é isso que eu penso. Eu penso que dar certo é agir de forma leve, tratar o outro com leveza e cuidado e o máximo de delicadeza possível. E entender quando a coisa começar a afundar. Entender que talvez o outro não seja um monstro e essas coisas assim, pra que depois não haja ódio por todos os lados.

Mina Vieira.

Quando eu fui Clarice Lispector.

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Não lembro quando, não lembro o motivo, não lembro do clima ou da cor do céu, não lembro do cheiro da fumaça e não lembro nem mesmo se havia fumaça, mas lembro que a rua estava cheia e que os faróis dos carros luziam para atropelar sonhos ou vontades, qualquer intenção muito poderosa. Ou talvez os faróis estivessem apagados, pois era dia, mas é certo que existia alguma espécie de atropelo pulsando naquela esquina.
Os carros coloridos iam, vinham, passavam, corriam, voavam e eu só tentava passar, só tentava dar o primeiro passo. Nunca conseguia, pois o chão me segurava. Como ímã, como cola quente e às vezes como cola de farinha e água ou saliva ou esperma, mas ainda sim conseguia me prender com assustadora eficiência. E eu pensava, pensava e pensava. Tentava assumir o controle do meu corpo, mais precisamente o controle de minhas pernas e meus pés, mas raramente conseguia. E quando sim, um cardume de carros brilhantes atropelava meu êxito, impiedoso. E eu tentava e dizia vamos, corpo, não há carros, não há monstros, não há braços te segurando, há apenas uma infinidade de asfalto esperando para ser pisada mas não, ele nunca obedecia. E acho que ventava, mas caso não estivesse ventando peço licença aqui para inventar um grande vendaval. Ventava e meus poucos cabelos insistiam em grudar na minha boca e cobrir minha visão, sufocar meu grito ou impedir algum tipo de percepção de coisas que eu acreditava ser possível. Mesmo assim, eu via as pessoas e elas não tinham medo. Elas todas levantavam a cabeça e às vezes fechavam os olhos para tomar coragem, mas todas atravessavam. E me arrisco a dizer que lembro que alguns carros até se comoviam e paravam para que ninguém se machucasse, mas não para mim, nunca para mim. Para mim eles todos rosnavam e me diziam não o tempo todo, só para que eu ficasse eternamente morando naquela esquina. E nem era uma esquina feliz. Nem era uma esquina cheia de putas decadentes com um poste meio torto pra iluminar tudo, era uma esquina que só o sol visitava, mesmo quando era noite. Era uma esquina sem grandes atrações e sem padarias, sem açougues, sem teatros ou farmácias, era uma esquina. Um grande muro, talvez. Um casarão vazio, talvez, com um carro velho na garagem e folhas secas pelo chão, como quando a gente fica muito tempo sem limpar a casa. E aquilo não era esquina para mim, não mesmo. E às vezes eu pensava que não havia cola quente que me fizesse ficar morando ali, em pé, para sempre. Às vezes eu pensava que não havia carros, não havia força divina, não havia abismo que me fizesse continuar ali. Mas então eu olhava para as pessoas todas de branco, algumas vestindo jalecos, algumas de seringa na mão, algumas sorrindo e algumas meio nuas, e então alguém me fazia ficar. Então alguém vinha, se dizia meu amigo e pedia pra injetar algo em mim e tudo bem, porque era sempre só uma picadinha. Mas injetavam chumbo, injetavam pesados blocos de chumbo pra me deixar ali parada, ali inerte, ali frágil e ali pronta pra apodrecer. Às vezes eu olhava pro céu e tentava lembrar quanto tempo fazia, mas não lembrava de mais nada. Não lembrava nem mais o nome da esquina, não lembrava nem mais o nome daquelas coisas engraçadas com rodas que brilhavam e sempre paravam rosnando pra mim. Cachorros, me disseram. Um dia eu pedi pra uma moça bonita, uma moça toda de branco que atravessava a rua segurando uma bandeja. Puxei de levinho pelo braço e perguntei qual era o nome daquela coisa que rosna, aquela coisa que para bem de frente pra gente, olha nos olhos e rosna. Ela disse que eram cachorros e a partir desse dia eu passei a dizer a todos, a qualquer um, que era pra tomar cuidado com os cachorros que andavam rápido demais e eram pilotados por donos barbudos, porque esses eram os piores. Alguns riam, alguns tinham medo de mim. Depois eu entendi. Um dia eu acho que acabei entendendo o que acontecia e deixei de precisar colocar nomes em todas as coisas. Pra quê, se eu posso dizer aquilo que rosna, aquilo que anda, aquilo que come, aquilo que atropela e aquilo que brilha? E pra quê, também, se mais ninguém falava comigo. Minha função era esperar minha vez de passar, só isso. Um dia cheguei a colocar o pé no asfalto e foi tão bonito... Mas logo me seguraram. Não vi quem foi, mas se tivesse visto eu teria logo dado uma mordida na mão ou em qualquer parte fácil de morder. Às vezes eu tinha sonhos. Não aqueles sonhos de quando a gente dorme e nem aqueles sonhos que são grandes vontades de participar de grandes coisas, mas sonhos que eram visões, que se pareciam com visões. Às vezes eu sonhava (assim, tendo visões), que a rua começava a ser um jardim com um gramado bem verde e com flores bem grandes, bem coloridas. As pessoas de branco usariam roupas mais felizes e teriam a pele menos cinza. As pessoas de branco seriam boas comigo e sentariam na calçada enquanto eu esperava a minha vez de passar. Elas me ajudariam e conversariam comigo sobre as outras ruas, contariam histórias sobre as pessoas que conseguiam passar. Elas me contariam o segredo. Mas nunca acontecia. Nada nunca acontecia ali naquela esquina. Era algo como uma ponte: as pessoas apenas atravessavam e nunca mais, não tinha volta. Era bom assim, porque aquela esquina não era mesmo um lugar de permanência. Só eu. Eu era a única. Acho que no fundo eles precisavam de mim. Não sei se a esquina, as coisas, ou as pessoas de branco, mas alguém precisava demais de mim ali. Não que gostassem de mim, porque teriam me deixado passar se gostassem, mas porque não deixavam ninguém mais ficar ali, não deixavam ninguém que pudesse me fazer mal se aproximar de mim. Então, um dia estavam todos muito ocupados. Um dia estavam todos num grande círculo conduzindo uma garotinha pelo braço, trazendo-a pra perto de mim. Só a garotinha me via, os olhos de todos os outros estavam grudados com alguma cola poderosa, mais poderosa do que todas as outras que eram usadas para fixar meus pés. Aí eu encarei a rua e vi todos os carros ou cachorros desaparecendo em pequenas explosões. Uma explosão de estrelas prateadas de um lado, uma grande nuvem de fumaça de outro, barulhos de aplausos atrás de mim. E eu olhava e olhava e olhava e não entendia, e queria pegar tudo com as mãos para que nada fosse embora, queria guardar tudo numa grande mala, sentar na calçada e só abrir a mala quando eu ficasse sozinha. Lembro que ainda ventava e que eu sentia vontade de chorar, porque a rua ficou vazia. Do meu lado, só um grande círculo de cegos vestidos de branco. Foi aí que eu entendi. Foi aí que botei um pé no asfalto e nada aconteceu. Foi aí que botei o outro e um grande nada continuou acontecendo. Foi aí que dei um passo e uma enorme felicidade me atropelou, me fez bater a cabeça na sarjeta e começar a sangrar. Foi aí que eu morri. Macabéa.

Mina Vieira.

Coisas que você pode dizer só de olhar pra ele (ou O dia em que o inferno apareceu.)

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Ele mantém os plásticos dos filmes novos como eu nunca teria paciência para manter. Ele se diz desmemoriado e lembra horários de sessões de filmes esdrúxulos que ele diz serem bons, claro, e você nunca sabe se ele está ou não falando sério. Ele te humilha na hora de estralar os punhos, ele consegue fazer com os punhos dele o dobro de barulho que você faz com os seus e te deixa com cara de idiota sem nem pedir desculpas. Ele pede desculpas, mas quase nunca quando é realmente necessário. Ele tem bons livros e os separa por autor, tudo de forma muito bem organizada até que alguém como você chegue e tire tudo da ordem que ele colocou. Ele completa os nomes que você tem na ponta da língua, ele entende suas crises de falta de léxico e se diverte com elas, ele não liga se você derrubar o banheiro dele todo e não conseguir consertar depois e ele sai do quarto se você não conseguir fazer xixi com ele presente. Ele assiste Kill Bill com você e, mesmo não sabendo do quanto você é alucinada pelo filme, diz que você pode deixar de chupá-lo pra assistir. Ele toma cervejas importadas de nomes estranhos e te faz acreditar que talvez tomar cerveja não seja tão ruim assim. Ele te faz botar vodka de novo na boca, ele te faz alucinar com uma caipiroska de kiwi que em outras ocasiões ou com outras pessoas você nunca beberia. Ele guarda rolhas com datas e nomes e ele toca violão de um jeito bonito, bonito a ponto de você não querer que ele pare. Ele faz com que você acredite que o quarto dele é o melhor e único lugar do mundo e faz com que você não queira sair dali nunca, mesmo que um dia acabe sendo necessário. Ele fala baixo e tem uma voz que te lembra demais das vozes extremamente graves do passado, mas que ainda te arrepia todos os pêlos do braço. Ele tem tudo que você sempre quis ter, ou pelo menos grande parte das coisas: ele tem uma máquina de escrever, ele tem uma máquina fotográfica que se parece com uma arma, ele tem um quarto clean e tranqüilidade pra fazer o que quiser dentro dele. Ele abre a porta do carro se você fizer algum drama, mas logo depois esquece. Ele tem surtos nos quais se torna a pessoa mais seca do mundo, mas então ele pega na sua mão e é sempre tão bom que você tem vontade de chorar. Ele é capaz de te levar aos lugares mais incríveis que você jamais pensou que existissem, mesmo que ele leve algum tempo pra pensar neles. Ele tem os melhores amigos, ele tem todo o universo que você quis e que luta incansavelmente pra conseguir. Ele não é pra iniciantes. Ele te deixa acordada enquanto dorme pesadamente do seu lado só pra que você tenha algo bom pra olhar enquanto não consegue manter os olhos fechados. Ele não sabe contar piadas. Ele te deixa envergonhada o tempo todo, mas nunca o bastante pra que você fuja dele. Ele te faz não querer voltar pra sua vida, ele te faz querer fugir de casa e ser raptada de verdade. Ele te ensina a diferença entre seqüestro e rapto, falando nisso. Ele te diz coisas bonitas que terminam com um comentário sobre o seu cheiro e depois pede pra você esquecer tudo o que ele falou. Ele cuida de você como ninguém nunca se preocupou em cuidar. Ele faz o que eu faria, ele faz o que eu faço. Ele te faz derreter com a forma que te chama e ele te faz beber em uma semana a quantidade de álcool que você não bebeu numa vida inteira. Ele compra saquê com você e te leva pra beber no meio da rua, até que você bebe demais e ele te pede pra parar, porque ele falou com a sua mãe. Ele tem duas garrafas de whisky no quarto e te faz perceber o quanto uma boca com gosto de whisky é boa pra beijar. Ele te faz abandonar a catuaba porque você quer sentir melhor as coisas, você quer que com ele o tempo passe tão devagar quanto tem que passar. Ele fica quieto por eternidades, ele faz você implorar mentalmente pra ouvir a voz dele de novo, ele te tortura sem querer. Ele entrou pra lista. Ele não existe.

Mina Vieira.

Eu queria - parte 1.

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Eu queria ser mais simples, queria ter menos faces, queria ser mais plana e menos profunda. Eu queria ser fácil, queria ser rasa, queria saber lidar com bebês e queria que os gatos se aproximassem de mim sem que eu tivesse que correr atrás deles. Eu queria que meus dedos não doessem enquanto eu digito, eu queria ter sido uma boa escritora nos meus períodos de crise. Eu queria ter tido menos crises. Eu queria ter menos problemas e coisas ruins/fortes pra contar sobre o passado. Eu queria saber me expressar melhor. Às vezes eu queria encontrar um meio, um equilíbrio entre o exagero que eu sou e a brandura que eu queria ser: seria o ideal ou, pelo menos, o suportável. Eu queria uma opinião unânime sobre mim. Eu queria um tratado sobre tudo o que eu sou e sobre as coisas que estão erradas dentro das coisas que eu sou. Eu queria consertar essas coisas. Eu queria ser mais flexível, mais maleável, menos radical, mais agradável, mais verdadeiramente cordial. Eu queria ter mais livros, mais CDs, mais escritores favoritos, mais vozes favoritas, mais paciência, mais normalidade. Eu queria mesmo ser alguém mais equilibrado. Eu queria ser mais constante, mais linear, mais reta, mais previsível. Eu queria não ser perigosa, eu queria que não houvesse um aviso de perigo colado na minha testa, eu queria que as pessoas pudessem se aproximar com a minha garantia de que nada vai acontecer a elas. Eu queria ter entendido antes que beleza - a nossa - é algo que vem de dentro antes de qualquer outra coisa. Eu queria saber aos 11 anos que é sério o que dizem sobre só sermos bonitos depois de alcançarmos certa coisa também bonita dentro de nós. Eu queria saber contar histórias. Eu queria conseguir narrar coisas, inventar nomes para personagens, inventar casos e me manter falando sobre eles por tempo o bastante pra que virem contos ou novelas ou romances inteiros. Eu queria me excitar com poesia, eu queria ter uma voz bonita pra cantar, eu queria falar com mais calma, eu queria ser daquelas pessoas misteriosas que falam pouco e estão sempre com um olhar estranho de quem não está feliz, mesmo quando estão sorrindo. Eu queria saber cantar mais músicas, queria assistir mais shows, queria mais amigos, queria mais e mais o tempo todo. No fundo, eu continuo querendo mais intensidade. Apesar de pedir equilíbrio e brandura, eu ainda quero a unha na carne e sangrar pra escrever o que realmente importa.

Mina Vieira.

E não tem Pepsi-cola.

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Eu passei dois minutos te olhando ler Fante, te olhando ler um livro cujo prefácio foi escrito por um dos meus escritores favoritos e isso não teve importância nenhuma. Eu passei esse tempinho te olhando e me senti quase transbordar, porque acho que a minha capacidade é ínfima perto do que você tem pra encher. E te olhando eu só queria te explicar um monte de coisas, só queria falar o quanto você é bonito e o quanto você sempre posiciona as mãos de alguma forma fascinante. Eu queria te segurar pelos cabelos e te gritar o quanto eu sou devota e te confessar que sempre que você dorme antes de mim e que eu te olho, eu só consigo entender a coisa que eu sinto como devoção. E eu até já posso ter sentido coisas muito grandes e bonitas por pessoas muito especiais, mas essa coisa toda de devoção, essa necessidade tão grande de me ajoelhar, beijar seus pés e olhar pra cima... ah, baby, isso aí eu não tô entendendo direito não. Isso eu não conhecia, ainda não sei direito o que é, mas acho que serve pra justificar meu choro. Eu queria te dizer o quanto eu amo cada pêlo do seu peito, cada pêlo da sua barriga, eu queria te dizer quando eu me divirto puxando todos eles ou brincando de esconder meus dedos sem que você nem perceba. Eu queria te falar do quanto suas sobrancelhas grossas são bonitas e do quanto eu sinto vontade de passar horas olhando para elas. Eu quase explodo de vontade de te falar que a sua barba tem a textura das escovas de dentes que eu costumo usar e que ela me faz cócegas. Eu queria te falar também que às vezes eu me pego implorando pra ser tocada, que a vontade às vezes é tanta que dói, como quando minhas mãos ficam doendo quando eu quero chorar. Eu queria te falar que eu tenho medo de te falar muitas coisas e que isso é errado de sentir, mas eu não falo. Eu queria que você soubesse que eu adoraria ter fotos com você e que adoraria te propor as coisas infantis que me fazem tão feliz. Eu queria saber te dizer com os olhos que ser tocada por você depois de tanto implorar é bom, é muito bom. Mas dura pouco, dura tão pouco que eu volto a implorar imediatamente depois. Eu queria ter mais chances de te falar sobre como eu gosto de transar com você e de como as coisas são diferentes com você, de como eu não consigo expressar o quanto é bom quando você está em cima de mim e segura meu rosto com força, enquanto todo o resto acontece muito devagar. Não consigo. Queria ter mais chances de te falar sobre como eu gosto de quando é você quem procura minha mão pra segurar, sobre como eu gosto de tentar ser boa pra você. Eu queria te amarrar numa cadeira, sentar no seu colo e monologar sobre o seu cheiro mágico de pele, sobre o cheiro bom que você tem perto da orelha, sobre o cheiro viciante que você tem em todo o corpo, impregnado em cada um dos seus pêlos tão adoráveis. Eu queria que você lesse meus pensamentos pra eu não ter que dizer nada, eu queria que o mundo notasse o quão rasa e simples eu sou perto de você e o quanto eu me odeio por ainda nem ter começado a te entender. Eu queria te contar de todas as vezes que eu juro que nunca mais vou te tocar enquanto você continuar não querendo me tocar. Eu queria muito te falar do quanto você é estranho e do quanto eu quero passar anos te estudando, todos os dias, pra no final concluir algo que te faça parecer mais fácil. Mas você não deixa.

Porque algumas coisas precisam ser ditas.

Mina Vieira.

Na cara.

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Nós somos de uma geração que já nasceu morta, como disse Caio. Nós somos de uma geração que esperou todo o mundo acontecer pra depois nascer. Nós chegamos depois do fim, nós chegamos quando tudo já era uma imensidão marrom e estática, sem portas ou qualquer outro tipo de entrada. Nós aterrizamos num mundo onde todas as coisas já aconteceram e que foi lacrado antes da nossa chegada que é pra ninguém bancar o engraçadinho.

E eu digo nós todos nós. Nós eu, com 17 anos. Nós P., com 25. Nós Patrix, nós Marcelo, nós Ariane, nós Pedro, nós vocês todos.

Nós nascemos numa terra que não dá pra plantar coisas, nós inventamos de nos instalar num lugar apertado demais pra voar, num lugar apertado demais sequer pra abrir os braços. Nós nos enfiamos num espaço-tempo que não permite, que simplesmente não permite qualquer coisa. Que vai podando o tempo inteiro, que vai mandando calar a boca, que vai te fazendo inalar um monte de éter e cair inconsciente pra depois acordar meio zonzo. A gente tá aqui, a gente tem a internet, a gente domina o Orkut, a gente tem milhares de celulares, a gente sabe dirigir e fala bonito e a gente se mete a escrever e a gente tem blogs, mas e aí?

E aí que metade de nós não consegue decidir que passo dar. E aí que a gente não consegue nem se alguém disser que não importa quanto dinheiro você precise pra aquela coisa, porque você vai ter. A gente não consegue nem se estiver mergulhado numa piscina de moedas de ouro, a gente não tem espaço pra fazer mais nada. Ninguém nos compra. Ninguém tá aqui me lendo e me achando fantástica e querendo publicar qualquer coisa do que eu escrevo.

Nós ficamos presos no adolescente foda que fomos. Temos todos 16 anos e estamos na sala de aula lendo algo que nenhum dos nossos colegas jamais vai ler. Estamos todos ouvindo nosso rock em nossos quartos e nos sentindo incompreendidos. Estamos todos aí nas ruas aprendendo a beber vodka e a transar irresponsavelmente. Estamos todos beijando pessoas do mesmo sexo e experimentando novas drogas e tocando violão com amigos cabeludos. Paramos aí, todos nós. Nós não conseguimos trabalhar, nós não conseguimos ter dinheiro, nós não conseguimos fazer nada útil com nossas ideias, nós temos essa coisa chata de parar a respiração na metade.

Mina Vieira.

Formiga, a inversão.

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Não quero viver esse sofrimento diário de ser ameaçado 2 ou 3 vezes por dia com ferro rubro, não quero a dor nas entranhas que acontece quando a gente é ameaçado assim e quero menos ainda ver meus pelos se arrepiando de medo. Eu tô aqui tendo uma vida feliz, acordando todos os dias e indo trabalhar com a certeza de ter você andando de calcinha pela casa e me esperando com a comida pronta mesmo depois de um dia mais cansativo que o meu. Eu tô aqui sendo feliz nessa imensa fazenda de formigas onde Deus é o adolescente nerd que nos observa, mas então Deus broxa ou se corta fazendo a barba e pronto, eu sou a formiga escolhida para ser derretida com um palito de fósforo que tem 723 vezes o meu tamanho. Depois eu tenho que voltar ao jantar e sorrir pra você toda linda carregando dentro de si todas as coisas bonitas que eu garimpei a vida toda. Mas eu tenho uma pata a menos, porra, eu sou um aleijado depois da brincadeira de Deus. Não vou sorrir ou vou sorrir feio e ela vai perguntar o que eu tenho. Não tenho, não tenho é paciência ou força pra ser feliz nessa fazenda sabendo que um dedo pode vir e me prender ao chão a qualquer momento ou me cegar com a luz infeliz de um palito de fósforo pra depois me queimar. Não tenho coração pra deixar de ser louco e não me odiar quando descubro cada passo seu que eu não assisti porque tava enchendo a cara de cachaça barata. Te amo, merda, te amo tanto que tenho que engolir a vontade de gritar toda vez que eu te vejo de calcinha porque eu tenho certeza que essa imagem de você é das mais bonitas que eu vou ver a vida toda, tanto que tenho que morder a língua até sangrar pra não sair te lambendo toda no meio do dia, te chupando até que você fique toda roxa. Imagem engraçada. Mas então, eu te amo e se você tiver mesmo toda a inteligência que eu acho que você tem, vai ser fácil de entender: não consigo respirar tranquilo te amando assim e podendo morrer de tanto ser ameaçado. Ataque cardíaco, AVC, infarto, susto. Ou então corrosão. Ou vou derretendo até ir embora pelo ralo do banheiro. Por isso eu tenho medo de te olhar, vai que eu olho pro lugar errado e alguém risca um palito de fósforo, hã? Já não abro as suas gavetas, já não viro as páginas dos seus livros, já não olho as suas paredes, já não presto atenção no que você fala e não quero mergulhar em você. Tem algo aí, tem algo prévio, algo que ocupa muito espaço, que te faz maciça. Vou sufocar, abre espaço. Tenho medo, mas tô aqui sendo feliz.

Mina Vieira.

Edith Piaf Jr. (ou Internas)

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Falo um monte de besteiras, tiro a sua cama e os seus lençóis do lugar, não te deixo em paz, faço piada do nome da sua avó, durmo até 13h, te faço comer em lugares que você não gosta, maltrato seus gatos, bebo seu uísque e suas cervejas, babo quando deito de lado, faço comentários debochados sobre o jogo de futebol que você tá assistindo, visto todas as suas roupas, esmago seu nariz, acho gostoso apertar sua orelha enquanto eu tô vendo TV, estrago as surpresas que você quer me fazer, te faço respiração boca-a-boca enquanto você consegue respirar normalmente, sujo seu notebook com pasta de dente, tomo 30 banhos por dia no seu banheiro, só como bebendo alguma coisa, não gosto de alho, tenho que dormir quando você quer ver o Malm, tomo cachaça enquanto todo mundo tá tomando chopp, sou feliz e bem humorada demais, odeio banho pós-sexo, choro com coisas muito boas, gosto de ficção científica e de podcasts nerds que fazem a gente dormir, quero jogar Imagem e Ação toda hora e nos locais menos apropriados, rio quando você tá falando sério, tiro sarro da sua dislexia, te obrigo a assistir That 70's Show, nunca percebo quando a graça das piadas acaba, coloco muito sal nas coisas, sempre me intrometo nos seus momentos chef, bagunço seu cabelo e adoro ficar brincando com os pelos da sua barriga, gosto da Dori falando baleiês, falo demais quando tô bêbada, te chamo pra nadar no fundo, não consigo entrar na água de uma vez, odeio beliscões, meu ácido só bate com você, tô temporariamente viciada em Sorine, uso sapatos que me machucam e depois quero ficar descalça, sinto fome toda hora, me sujo comendo chocolate, derrubo coisas na sua cama, gosto de você barbudo mas adoro fazer sua barba, te acuso de roubar meus CDs, tropeço nas garrafas que você deixa no quarto, tenho uma mãe com um namorado insuportável, choro no final dos filmes, moro numa cidade de 35.000 habitantes, gosto de psicologia, odeio universitários, gosto de presunto, ouço um monte de música ruim, quase nunca gozo com penetração, assisto MTV, não tenho pais legais e muito menos ricos, durmo de meias, lembro de praticamente todos os meus sonhos, nunca tive amizades coloridas, não tenho 18 anos, odeio motéis e faço qualquer coisa neles que não seja sexo, não gosto de maconha, sou ruim em Exatas e não passei no vestibular, não consigo tomar anticoncepcional e minhas menstruações às vezes duram o mês inteiro, sou chata no MSN e você ainda vem dizer que só ama a minha bunda? Sei...

Mina Vieira.

Meu tipo de pessoa.

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Não devia gostar de você. Por uma série de motivos muito sérios eu não devia gostar de você, mas eu gosto. Eu gosto porque se você não tivesse aparecido, minha vida estaria uma merda gigante, porque sem você eu seria muito mais fracassada do que sou agora. Eu teria me destruído quando descobri que não passei no vestibular se você não estivesse no telefone comigo, eu estaria metida em qualquer relacionamento totalmente auto-destrutivo e perigoso, chorando toda hora e lamentando o horror que é morar nessa cidade. Porque se tirar você de mim não sobra mais nada, nêgo, porque você é a constância que faz minha vida interessante e invejável, porque por enquanto eu posso me meter em qualquer inferno tendo a certeza de você existir pra me consertar. Você é toda a loucura que eu tenho, você dá vida a todas as insanidades que antes existiam apenas na minha cabeça, você faz minhas cores serem mais reais. Você é chato, reclama das minhas roupas e diz que eu tenho bebido demais. Eu digo que você é gay por ficar sacaneando as minhas roupas e eu tenho bebido porque você fica delicioso depois que toma umas doses de uísque e eu pensei que ficava também.

Você me incentiva de uma forma estranha: cada vez que eu ameaço evoluir é pra você, pra te deixar orgulhoso, pra entrar na categoria das mulheres de menos de 25 anos que são bem sucedidas e te excitam. Minha casa é uma merda, eu tô meio Frida hoje, perdi meu jeito comedido em alguma chateação do dia. Já escrevi e-mails desesperados por sua causa quando eu ainda não entendia e nem aceitava direito essa coisa de gostar com você com tanta força. Acabei cedendo logo, já que não há muito o que fazer quando uma coisa como nós decide acontecer. Foi uma coisa gigante, inevitável. A gente se encontrou e decidiu que era necessário resolvermos nossas vidas pra enfim ficarmos juntos. Não vou publicar isso, tá muito ruim. Isso vai ficar registrado nessa agenda velha de 2006 e alguém vai encontrar no meio das minhas coisas depois que morrermos velhinhos numa cadeira de balanço na varanda de casa. Foda-se que você vai morrer antes dos 30, foda-se que você não quer e não vai ficar velhinho nunca, foda-se que a Fly te deixou traumatizado. Foda-se. Você é o meu tipo de pessoa e eu adoraria ser o seu. Eu quebrei um coração dizendo que você era o meu tipo de pessoa, que você encaixava em mim e que, por isso, eu não conseguia me livrar de você. Você e seus filmes franceses, você e sua fotografia, você e seus cabelos desgrenhados, você e seu humor cinza chumbo, você e seu diastema, você e seus chinelos de couro, você e sua pouca paciência, você e sua voz de ressaca, você e os seus sonhos setentistas, você e sua Kombi, você e seu sebo, você e seus gatos: meu tipo de pessoa!

Adoro viajar com você, adoro demais. Com você é bom pescar lambari no escuro, é bom acordar cedo pra preparar um café surpresa, é bom tomar banho rapidinho antes que a água acabe, é bom deitar na grama suja e molhada enquanto a gente tenta se proteger com umas peças de roupa acidentalmente esquecidas na sua mochila. Meus sabonetes favoritos estão na sua casa, tenho mais absorventes aí do que aqui, meus melhores sonhos são sempre tidos nos seus travesseiros. Que ruim que eu sou tão nova , tão inexperiente e tão loquinha e não sirvo pra fazer crochê. Mas você é o meu tipo de pessoa: alguém que me coloca pra ouvir Hyldon no meio do mato e que guarda um filme pra abrir antes de morrer. Seu inglês de seriado é, de verdade, o melhor.

Mina Vieira.

Eles. (ou Um Texto a Raulzito e Timothy Leary)


Lutam contra o instinto, contra as vontades mais primordiais do ser humano, contra a expansão da mente, contra a busca de informações, contra o direito irrevogável de se buscar felicidade do nosso próprio jeito, contra a diferença, contra a singularidade, contra a beleza enorme que a individualidade de cada ser representa. Lutam contra as formas mais puras de amor, contra o sexo quando, como e com quem se tem vontade, contra as relações de afeto entre seres ditos incompatíveis, contra a simplicidade, contra a gentileza, contra a leveza de um mundo tolerante, contra o amor como a maior das medidas, contra o espírito, contra a paz interior, contra compartilhar o que estava aqui antes de nascermos, contra assumir que o mundo é de todos os indivíduos, contra o trânsito livre sem fronteiras ou passaporte. Lutam contra o fluxo livre de pessoas, contra a masturbação, contra o encontro, contra o engajamento, contra o desafio, contra a compreensão e o inconformismo, contra a perspicácia, contra a inocência das crianças, contra o fluxo de ideias que existe sem interferência dos meios de comunicação, contra a espontaneidade, contra a manualidade. Lutam contra Kerouac, Ginsberg, Burroughs, Thompson, Manson, Leary, Kesey, cabelos compridos, barbas sujas, calças rasgadas.


Lucram com guerra, com novela, com a venda de cigarro e álcool, com o tráfico de drogas, com bundas de mulheres gostosas, com cirurgias desumanas, com noticiários parciais de merda, com jornalismo que não se pode levar a sério, com a TV Globo, com tudo que é raso, com a inocência inerente ao ser humano, com a fragilidade, com a pouca instrução, com a Veja e a Marie Claire, com antidepressivos. Impõem confrontos entre pessoas pacíficas e outras pessoas pacíficas, censuram, coíbem movimentos revolucionários não-violentos, espionam, ameaçam, fazem uso de um regime de terror pré-histórico, submetem à escravidão indivíduos da mesma raça ou de raças inferiores, glorificam o materialismo, a posse, a riqueza, os dígitos na conta bancária. Condenam tudo que não seja cinza, odeiam cores ou pessoas que sorriem demais, baseiam-se num sistema podre de aparências e habilidades cênicas, matam os ricos, os pobres, os grandes, os pequenos, os jovens, os velhos. Matam, não importa quem. Correm contra seu próprio tempo, têm visão limitada e vida apenas física, julgam casamento a expressão de amor absoluta e infalível, proíbem o aborto, interferem em relações pessoais, associam amor livre à promiscuidade, açoitam, inventam deus e o diabo, condenam o trabalho intelectual, lobotomizam qualquer criatura potencialmente pensante, condenam a sexualidade. São um bando de chatos iguais e tediosos que odeiam sexo, odeiam a vida e odeiam a si próprios.

Mina Vieira.

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