segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Juízo Final.

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Eterna e cheia de véus possuidora das minúsculas coisas que tanto te seduzem. Doninha de todos os detalhes enlouquecedores que você, até pouco tempo atrás, julgava só existirem nos seus mais insanos sonhos. Ela guarda todos eles e não faz questão de escondê-los. Tudo o que é necessário fazer para encontrar tais detalhes, para ter o prazer de contemplar todas aquelas sutis e tão raras belezas é pedir. Pedir com algum olhar de quem há tempos perdeu o orgulho e a vergonha, pedir quase como quem suplica mas ainda faz questão de manter uma dose mínima de integridade, não sabe-se por quê.

Não, ela não é bonita e antes que você venha levantar a voz e dizer que assim está tudo errado, eu digo que assim está tudo muito certo e que você não me venha teimar com isso, entendido? Ela seria bonita, se você quisesse, se você buscasse, se você sonhasse com uma loira de coxas grossas e boca vulgar, ela o seria. Ela poderia se tornar a mulher mais desejada de todos os bares do mundo, mas isso não faz parte de suas preferências mais bem protegidas. Não, não.

Apesar de tudo isso, ela te fascina. Fascinação. Palavra mais mal usada de toda a história das palavras mal usadas, mas acho que é mais ou menos isso que ela faz com você. Ela é daquelas que nunca parecem ter nada de mais, plus nenhum, mas é capaz de fazer você se afogar e afogar nos perigos que ela oferece. Ela pertence a um tipo que seus amigos nunca entenderão, não importa o quanto você explique. Ela será sempre coberta por um manto de invisibilidade vencido apenas por você. Por trás do manto, todos os encantos esperando, prontinhos para desabrochar bem diante dos seus olhos.

Primeiro você vai se apaixonar por um pescoço quase fora do comum, mas tão inútil quanto quase todos os outros pescoços que você já tocou na vida. O dela pode ter lá o seu charme e não há quem negará, mas aquele cilindro revestido de seda pura não será a sua perdição. Ainda não. Caminhos diáfanos enxarcados de sangue até poderão te distrair por alguns minutos, mas quem consegue se apaixonar eternamente por aquela estrutura imóvel e que oferece pouquíssimas possibilidades de interação? Você não consegue, aposto que não.

Depois, um jeito estranho de mover as mãos. Isso sim vai destruir sua vida, de um jeito ou de outro. Você conhecerá dias em que comer será a mais desnecessária das suas obrigações, apenas pelo torpor que aqueles movimentos causam. Sua fome desaparecerá, seu sono já tão escasso e tão improdutivo passará a não existir, seus olhos logo se tornarão esferas avermelhadas e ineficientes, sua respiração passará a ser entrecortada por pequenos soluços e suas caminhadas serão resumidas a tombos cinematográficos e desajeitadamente cómicos. E por quê, Deus? Por que a sua vida ficou tão difícil, por que viver é tão pesado, por que tudo dói tanto e por que tudo de bom demora tanto a acontecer? O jeito como ela move as mãos grandes demais e de dedos finos demais e frágeis demais, mãos beija-flor. Por isso, por essas pequenosidades.

A partir daí, tudo será pior. Ela será sua e estará em seus braços sempre que precisar, mas não seja estúpido a ponto de pensar que isso proporcionará algum alívio. Você será feliz por poder pedir a ela que segure suas mãos e guie seus dedos até aquele ponto na barriga dela em que dá pra sentir uma espécie de pulsação enérgica que vocês dois acreditam que esteja relacionada ao coração dela. E ela dirá, em todas as vezes, que você pode ouvir o coração dela pela barriga, aqui ó, uns dois dedos à esquerda do umbigo. Ela fingirá que não foi você quem pediu, fingirá que aquilo é algo surpreendente para você, sem nem pensar no fato de ser a trigésima vez naquela mesma semana. E quem mais faz isso? E quem mais se orgulha de uma anomalia dessa espécie, e quem mais usará isso para te seduzir, e quem mais, além dela, te apresentará esses e outros mistérios sem exigir nada maior que a sua vida?

Em dias seguintes você segurará com força duas mãos das mais quebrantáveis já vistas e observará, absorto, as unhas coloridas daquele anjo fácil. Passará as pontas de seus dedos mal cuidados sobre uma superfície tão lisa quanto quase todo o resto daquele corpo. Repetirá esses movimentos por horas e dirá, com a voz meio presa na garganta, que aquilo é perfeito, que aquilo é o que te faz amá-la. Logo você se irritará, ao mesmo tempo em que fica mais apaixonado, com as risadas despreocupadas que ela deixa escapar quando você se sente frustrado por ter feito alguma coisa errada. Tal capacidade de ignorar por completo as suas preocupações o fará odiá-la por alguns segundos, apenas o suficiente para você se sentir culpado e pedir uma coisa, uma das coisas mais lindas que você sabe que ela tem para te oferecer.

Neste momento, você vai se lembrar de uma foto qualquer em que ela estava sentada em posição de lótus, com os pés em cima dos joelhos e olhando para frente como quem possui ótimos motivos para fazê-lo. Pedirá, então, que ela se sente assim para que você fique olhando. Ela estará nua e dirá que não sabe fazer aquilo, que você está louco e que não tem nenhuma foto assim. Mas logo começará a rir e, nua, respirará fundo e realizará seu desejo. Depositará gentilmente o pé direito sobre o joelho esquerdo e vice-versa, enquanto você entra em transe. Ela aproveita os seus olhos fechados e esvai-se. Sim, esvai-se. Escoa, dissipa, esvaece, evapora, desfalece, desaparece, sobe aos céus. Num surto de neblina, levita até transcender as barreiras de concreto ou os seus pedidos tolos. A cama molhada, o clarão mal direcionado... sobe aos céus.

E você pensa em como ela era linda de calça jeans e sutiã verde se olhando no espelho. E você pensa no quanto a voz aguda dela te faz falta e no quanto ela era boa quando falava de Cuba e no quanto os olhos dela brilhavam quando surgia alguma oportunidade para falar sobre tudo o que aprendera. Você pensa no quanto gostava de beliscões e mordidas e os pequenos sarcasmos que ela depositava diariamente na sua caixinha de coisas preocupantes. Você pensa na curva da cintura dela e no quanto ela agradecia com tanta vergonha e, ao mesmo tempo, tanta despreocupação aos seus elogios. Você pensa na insignificância que tudo assumia depois que ela passava, você pensa em como subir aos céus.

Mina Vieira.

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