segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Coisas que você pode dizer só de olhar pra ele (ou O dia em que o inferno apareceu.)

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Ele mantém os plásticos dos filmes novos como eu nunca teria paciência para manter. Ele se diz desmemoriado e lembra horários de sessões de filmes esdrúxulos que ele diz serem bons, claro, e você nunca sabe se ele está ou não falando sério. Ele te humilha na hora de estralar os punhos, ele consegue fazer com os punhos dele o dobro de barulho que você faz com os seus e te deixa com cara de idiota sem nem pedir desculpas. Ele pede desculpas, mas quase nunca quando é realmente necessário. Ele tem bons livros e os separa por autor, tudo de forma muito bem organizada até que alguém como você chegue e tire tudo da ordem que ele colocou. Ele completa os nomes que você tem na ponta da língua, ele entende suas crises de falta de léxico e se diverte com elas, ele não liga se você derrubar o banheiro dele todo e não conseguir consertar depois e ele sai do quarto se você não conseguir fazer xixi com ele presente. Ele assiste Kill Bill com você e, mesmo não sabendo do quanto você é alucinada pelo filme, diz que você pode deixar de chupá-lo pra assistir. Ele toma cervejas importadas de nomes estranhos e te faz acreditar que talvez tomar cerveja não seja tão ruim assim. Ele te faz botar vodka de novo na boca, ele te faz alucinar com uma caipiroska de kiwi que em outras ocasiões ou com outras pessoas você nunca beberia. Ele guarda rolhas com datas e nomes e ele toca violão de um jeito bonito, bonito a ponto de você não querer que ele pare. Ele faz com que você acredite que o quarto dele é o melhor e único lugar do mundo e faz com que você não queira sair dali nunca, mesmo que um dia acabe sendo necessário. Ele fala baixo e tem uma voz que te lembra demais das vozes extremamente graves do passado, mas que ainda te arrepia todos os pêlos do braço. Ele tem tudo que você sempre quis ter, ou pelo menos grande parte das coisas: ele tem uma máquina de escrever, ele tem uma máquina fotográfica que se parece com uma arma, ele tem um quarto clean e tranqüilidade pra fazer o que quiser dentro dele. Ele abre a porta do carro se você fizer algum drama, mas logo depois esquece. Ele tem surtos nos quais se torna a pessoa mais seca do mundo, mas então ele pega na sua mão e é sempre tão bom que você tem vontade de chorar. Ele é capaz de te levar aos lugares mais incríveis que você jamais pensou que existissem, mesmo que ele leve algum tempo pra pensar neles. Ele tem os melhores amigos, ele tem todo o universo que você quis e que luta incansavelmente pra conseguir. Ele não é pra iniciantes. Ele te deixa acordada enquanto dorme pesadamente do seu lado só pra que você tenha algo bom pra olhar enquanto não consegue manter os olhos fechados. Ele não sabe contar piadas. Ele te deixa envergonhada o tempo todo, mas nunca o bastante pra que você fuja dele. Ele te faz não querer voltar pra sua vida, ele te faz querer fugir de casa e ser raptada de verdade. Ele te ensina a diferença entre seqüestro e rapto, falando nisso. Ele te diz coisas bonitas que terminam com um comentário sobre o seu cheiro e depois pede pra você esquecer tudo o que ele falou. Ele cuida de você como ninguém nunca se preocupou em cuidar. Ele faz o que eu faria, ele faz o que eu faço. Ele te faz derreter com a forma que te chama e ele te faz beber em uma semana a quantidade de álcool que você não bebeu numa vida inteira. Ele compra saquê com você e te leva pra beber no meio da rua, até que você bebe demais e ele te pede pra parar, porque ele falou com a sua mãe. Ele tem duas garrafas de whisky no quarto e te faz perceber o quanto uma boca com gosto de whisky é boa pra beijar. Ele te faz abandonar a catuaba porque você quer sentir melhor as coisas, você quer que com ele o tempo passe tão devagar quanto tem que passar. Ele fica quieto por eternidades, ele faz você implorar mentalmente pra ouvir a voz dele de novo, ele te tortura sem querer. Ele entrou pra lista. Ele não existe.

Mina Vieira.

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