quinta-feira, 2 de maio de 2013

Bombay Sapphire.


            Lívia se reposicionou na cama e terminou deitada de lado, olhos fechados encarando minha face já bem desperta. Com as duas mãos entre as pernas, aqueles seios pesados sempre se atropelavam e um tomava o outro num sufoco apaixonado sem pedido de socorro. Eu os estudava com frieza clínica, quase sem vontade de tocá-los, quando ela suspirou numa preguiça de sonhos bons e mexeu a boca sem articular palavra. Como na nossa primeira vez juntos, lembrei, um turbilhão de delicadeza. - Hoje eu não quero ir, disse-me em silêncio e com força, ávido de convencer a mim mesmo. Ela tocou minha canela com seu pezinho gelado e me penteou os pelos com o peito do pé. - Não vou mesmo, imaginei dizer, e fechei os olhos para encontrá-la em seu torpor sonolento.

            Não sei precisar por quanto tempo estive em paz, mas logo ouvi o rádio relógio nos atormentar seu bipe esganiçado. Meu primeiro pensamento foi a estranheza da minha possível permanência. Lívia desconfiava de qualquer tinta que ousasse respingar fora do papel da minha rotina, eu não podia ficar. Ela, por sinal, agora estava de costas me oferecendo seus quadris modestos e uma nuca rescendente à baunilha. Apertei os olhos e respirei muito fundo para me encher de novos pensamentos e expulsar de mim o peso dos 60 kg daquele corpo. Bati os dedos culpados no botão que calava o aparelho e acreditei em Deus ao levantar-me num único movimento preciso que quase sempre acordava minha esposa. Ele não existe. Lívia deve ter aberto os olhos imediatamente e, feroz, manipulou uma voz manhosa para executarmos o texto ensaiado à exaustão.

            - Por que você acorda tão cedo pra ir à academia? – ela despejou sem vacilar.
            - É o melhor horário, você sabe. – eu menti sem me doer.
            Silêncio.

            - E por que você não frequenta uma academia normal? – mansa, muito mansa.
            - Anormal é o seu ciúme, já disse que é uma academia só para homens.
            Silêncio.

            Eu apenas esperava a ferroada de seu golpe inevitável. Agora, cabia-me apenas disfarçar minha respiração acelerada e meus suores frios que quase escorriam das pontas dos dedos. Pode ser hoje. Hoje é um bom dia. Vai acontecer. Ela está procurando a forma mais cruel de me dizer que não acredita, eu sei.  Seu queixo miúdo tremelica e lhe é custoso adocicar a voz, eu posso notar. O golpe vem vindo. Meu sangue luta para fluir, meu estômago acorda de seu vazio dormente.

            - Então, por que você não frequenta uma academia normal?
            - A gente conversa quando eu chegar, pode ser? – eu sou sempre muito sóbrio.
            O golpe fica para amanhã.

            Sem responder, ela fechou os olhos e imagino que tenha voltado a dormir. Eu não quis ter certeza, apenas fugi às pressas temendo que meu gracioso dragão tivesse mais fogo a cuspir. Em segurança, tomei um banho lento e minucioso, demorando copiosamente na vastidão de partes que sobejavam enquanto eu fantasiava a aventura que estava por vir. Depois do banho, fiz pouco barulho enquanto vestia o figurino diário da minha mentira, beijei Lívia na testa numa mistura de ternura e medo, inalei seus cheios matinais sempre reconfortantes e encostei cuidadosamente a porta do quarto para não acordá-la. Talvez dormisse. Na garagem, liguei o rádio e senti o alívio da distância e das músicas que ouvia apenas quando estava sozinho. Eu seguiria de carro batucando no volante por vinte minutos rumo ao meu destino secreto: a antiga casa de meus pais.

            Quatro anos atrás, filho único, vi meu pai morrendo por último a sua morte já esperada de velho e herdei dele a casa vistosa na qual passei grande parte de minha adolescência. Lívia celebrou avidamente o acréscimo do novo imóvel e demonstrou sua conhecida praticidade sugerindo de imediato que eu o vendesse ou reformasse para o aluguel. Nós precisávamos de dinheiro, é claro. Lívia queria um filho e eu dizia sempre que agora não dá, meu amor, essas coisas custam muito caro. Agora, a casa solucionaria nosso impasse.

            Confesso, entretanto, que minha vontade de somar meus genes aos dela sempre foi tão poderosa quanto um saco de papel, e planos mais valiosos se multiplicavam em minha cabeça mal curada. Por eles, chorei à Lívia meu apego romântico a lembranças familiares que eu ia inventando conforme conversávamos. Contei histórias bonitas e pouco sinceras sobre os anos que passei na mansão. Mostrei fotos. Menti-lhe abrir o peito e confessei-lhe minhas saudades infantis, minha vontade de ser de novo cria de meus pais. Inventei um amor lancinante por aquela casa com a qual Lívia, que mulher mais dura, queria fazer dinheiro. Ninguém resistiria às minhas mentiras.

            Desde então, a casa segue intacta: um hospício onde bebo avidamente de minhas doenças.

            Hoje, passei em frente à sua varanda cheia de folhas secas e estacionei poucos metros adiante, debaixo de uma arvore pequena que disfarçava o carro tão bem quanto possível. Ao chegar, destranquei o portão baixo que dava acesso à porta da frente com um quase sorriso lutando em meu rosto bem barbeado. Com medo de ser visto, olhei para os dois lados e girei rapidamente a chave da porta até que ela se abrisse sem que fosse necessário tocar a maçaneta. A casa estava escura.

            Apesar de visitá-la diariamente, nunca me preocupei em limpá-la, untar de óleo as dobradiças, abrir as janelas ou trocar lâmpadas. Meu interesse sempre se limitou a um único cômodo: meu quarto. Faço questão de manter meu quarto de menino idêntico ao que me é vivo em algumas lembranças. O beliche que dividia com meu primo nas férias de julho permanece recostado na mesma parede cheia de capas de vinis que me viu perder a virgindade, alguns de meus livros continuam dispersos na estante de metal meio torta que suportou o peso dos autores que li na faculdade, uma cômoda de gavetas emperradas segue abrigando algumas peças de roupa e é fácil notar que os odores que impregnam as paredes não são obra do tempo, mas resquícios de suor do jovem que um dia fui.

            Ali, ao lado do antigo toca-discos de meu pai, construí a Amanda um altar. Apoiados em dois caixotes de feira dispostos lado a lado, objetos que invocavam seu fantasma mostravam-se atenciosamente organizados. Com cuidado de anjo, arranjei três de suas cartas extensas, confusas e apaixonadas. Eu as lia todos os dias numa voz que não precisava de olhos para saber como sair do peito, e experimentava um amor incompreensível provocado por folhas amareladas arrancadas de um caderno universitário. Logo atrás das cartas, mantinha também uma garrafa sempre cheia do gim potente que aprendi a beber e que bebíamos algumas vezes por semana enquanto deveríamos estar na sala de aula. Um de seus colares que cheiravam a metal barato e que levei para casa prometendo-lhe consertar o fecho. Dois bilhetes safados numa caligrafia de professora que eu gostava de apertar nas mãos como se pudesse fazê-los me penetrar à carne. Um CD de uma música só que eu não ousava ouvir novamente. Um caderno recém-começado cheio de apontamentos pouco relevantes sobre aulas que, novamente, não assistíamos. Um punhado de cravos-da-índia.

            Os elementos do meu altar singelo me ajudavam a não deixá-la ir embora. As palavras que lia todos os dias faziam soar em minha cabeça perturbada a melodia sensual dos encantos de Amanda. Seus cheiros boêmios ativavam milímetros do meu cérebro que de outra forma permaneceriam adormecidos pelo resto do dia. Seu cheiro de gim. Seu cheiro de cigarros. Seu cheiro de cravo-da-índia de quem não masca chicletes. E meu pau, sofredor primeiro dessa falta, respondia como há tempos havia deixado de responder às caças de minha esposa que sempre cheirava à baunilha.

            Hoje, depois de ler as três cartas, ajoelhei-me diante do altar, baixei minha bermuda de atleta e apertei meu pau já rígido enquanto atraía os odores de Amanda a meus pulmões. De olhos bem abertos, chamava meu gozo a conhecer a verdade de meu passado. Jamais fechava os olhos. Queria tanto uma foto, uma calcinha que me tapasse as narinas, uma gravação de sua voz que acordasse o quarteirão inteiro! Mas abri a garrafa de gim, apenas, e inalei forte o álcool perfumado que Amanda antes exalava entre as coxas. Pensei nas coxas finas e firmes, no sexo de pelos muito negros, no umbigo raso, no orifício que nunca me recebeu. Convulsionei num orgasmo animal que jogou minha testa rumo a um dos caixotes e por longos e plácidos minutos fumei um cigarro em agradecimento. Amanda era ainda a única responsável pela minha sanidade e também o maior dos meus arrependimentos.

            Gostaria de ter dado ouvidos aos que me alertaram que, onze anos depois, o cheiro dela ainda me viria à memória cada vez que eu tomasse um gole de gim-tônica com gelo. Ela bebia demais, afinal. Ainda no começo de nossos invejáveis vinte anos, bebia o bastante para que o cheiro enjoativo de gim me surpreendesse em seu suor, em seu pescoço marcado, em seus ombros ossudos, entre suas pernas, em seus cabelos castanhos e em toda a confusão do seu corpo. Uma bomba atômica promíscua embebida em Tanqueray gelado.

            Conheci minha bomba atômica durante o que ela gostava de chamar de um momento muito estranho da vida dela. Era o primeiro clichê que arriscava oralizar durante todas as nossas discussões violentas e bem articuladas ou diante de qualquer impasse no decorrer do que eu gostava de chamar de nosso relacionamento marginal. Quando não encerrava seus argumentos alegando a estranheza de seu momento, gostava de ameaçar me ferir irreversivelmente mesmo que passasse os dias se esforçando por ser gentil. 

            Não sou capaz de pintá-la, não há panegírico que lhe baste. À poesia de suas pernas abertas e do álcool que exalava, sempre calei. Cada uma de suas tantas manhas, cada manobra lubrificada à perfeição por sua saliva abundante, cada um de seus gemidos de êxtase terminados em urros boçais – seus caminhos deveriam ser detalhados num manual, cheguei a sugerir. Amanda era dessas mulheres que merecem um poema, um busto, um hino, um crime passional. Um altar.

            Ela foi a primeira mulher livre que tive em meus lençóis. Soberana, fazia piada da minha cama estreita e da amplitude da minha inexperiência enquanto segurava meu pau entre seus pés de unhas bem cuidadas. Foi quem me apresentou a ardência das palmas depois de um tapa desmedido e a sujeira da pele de quem dorme a noite inteira garantindo que os corpos não se afastem. Foi ela a quem chamei de puta e de quem recebi em troca o sorriso de quem ouve um eu te amo. Era de sua mocidade a mancha de sangue que perturbou meus lençóis por repetidos meses.

            Eu dizia que a amava todos os dias, saibam, e a amava com uma fúria que mal cabia nos meus poucos anos. Queria sequestrá-la, queria matar todos os seus familiares, queria fazê-la rainha num castelo que eu construiria roubando bancos, queria massagear aquele corpo até que meus dedos fossem penetrando sem dor a carne branca que o revestia. Eu queria que aquele vulcão me engolisse e me derretesse num único susto. Eu queria que ela me tragasse e que eu vivesse em seus pulmões enfumaçados até morrer todo preto. Eu queria lamber aqueles olhos e beber seu primeiro hálito todos os dias da minha vida.  Eu fiquei bêbado e disse a ela, eu sempre dizia. Ela me ouviu, paciente, e balançou negativamente a cabeça enquanto lacrimejava sem chorar.

            Foi só quando sentiu meu sêmen quente lhe ganhando os caminhos que presenciei seu choro desolado. Finalmente, enquanto meu gozo ainda pulsava, pude ver um amor tão febril quanto o meu pintando olheiras escuras naquele rosto hipnotizante. Ela não disse nada. Apesar das lágrimas, continuou me pisoteando com os seus nãos mais improváveis, com os seus nados magistrais enquanto eu engolia água sem saber coordenar minhas braçadas. Amanda era uma puta incapaz de dizer que me amava.

            Beijei Lívia pela primeira vez durante um dos frequentes e inexplicáveis sumiços de Amanda. Estávamos de férias e nada a convencia a falar comigo. A insistência da campainha, as ameaças, as flores, as ligações diárias, os xingamentos, os quilos que perdi. Engoliu-se, é o que sempre digo quando meus amigos da época insistem em perguntar. E Lívia me ajudou. Minha amiga do colégio tinha pais católicos e queria que eu parasse de fumar, enquanto Amanda me presenteava com maços e mais maços que perpetuavam meu vício ainda recente. Lívia às vezes não entendia as entrevistas que víamos na televisão, é verdade, mas se pendurava em meu pescoço cheia de um sorriso cândido que lhe escapava às bordas do rosto e repetia que me amava olhando fundo nos meus olhos ainda indecisos. Eu me sentia amparado nos braços virgens daquela nova mulher. Eu esperava que Amanda desaparecesse, mas aquela puta sempre voltava.

            Quando a vi voltando, subindo a rua em minha direção com uma tranquilidade insana nos olhos, diminuí. Senti minhas pernas encolhendo, meus braços perdendo a função, minha cabeça apertando o cérebro até que ele começou a vazar primeiro pelo ouvido direito, depois o outro. Ela chegou e envolveu meu corpo diminuto com todos os seus cheiros e disse que estava com saudades, aquela louca! Eu estava em casa, eu era o homem mais feliz do mundo. Senti meus órgãos colapsando enquanto eu negociava com minhas cordas vocais e arrancava de mim o maior não jamais presenciado por vidas humanas. Tive muito medo que ela se transformasse num falcão impiedoso, talvez, e voasse baixo para me rasgar com as suas garras vingativas. Eu queria que me pedisse pra ficar, que me oferecesse a perdição de seu corpo e que fizéssemos as pazes e fôssemos para minha cama e que Lívia morresse sem que meu celular sequer tocasse.

            Hoje, vi Lívia parada na porta do meu quarto de menino. Eu estava de costas para ela e fumava um cigarro com o pau flácido e grudento ainda na mão, vocês se lembram.

            É hora de ser pai.

Mina Vieira.

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