terça-feira, 27 de novembro de 2012
Fumaça.
14:47 |
Postado por
Mina Vieira |
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1. Moderato melancolico.
V. desceu de um carro preto na esquina da
Amálio Rocha com a Acre às onze da noite. Enquanto empurrava com desânimo a
porta amassada do lado do passageiro, virou o pescoço suado para a esquerda e
aparentou ensaiar um beijo de despedida que jamais aconteceu. V. talvez não se
lembrasse da umidade de um beijo. Certamente, não se lembrava também da água
suja empoçada nos buracos da calçada, da lama fluida que corria no meio fio ou
do lixo já tão familiar quanto o seu próprio.
Bateu a porta e caminhou aos tropeços rumo ao
seu lugar de hábito no muro que ainda nos fuzilaria. Com os saltos de suas
sandálias cobertos de lama, V. arrastava lentamente um de seus pés na tentativa
de expulsar uma embalagem plástica. Quando livre, já tinha o peso do corpo
sinuoso recostado no cimento rígido e vasculhava a bolsa pequena. V. também aplacava
o tédio de sua espera na fumaça de cigarros consecutivos.
A chama vacilante trepidava entre dois dedos
amarelados e se inflamava hipnoticamente a cada uma de suas tragadas tão
frequentes. Gotejávamos o nosso suor salgado e, à distância, V. parecia tremer.
Talvez tremesse a saliva de seu último cliente, talvez tremesse as cáries nos
dentes do próximo, mas não iria embora antes das câimbras se tornarem
insuportáveis e de seus odores pungirem nossos sentidos.
2 2. Adagio
poco febrile.
Eu
via o horror naqueles olhos pequenos quase ocultos por duas pálpebras flácidas
pintadas de um azul que não existia na natureza. Suspeito que aqueles olhos
jamais houvessem sorrido. Sequer antes da primeira noite em que ela acordou com
o pai cheirando-lhe as coxas e tapando-lhe o grito, ou mesmo antes da primeira
mordida, do primeiro cigarro apagado no suor de sua carne, do primeiro contato
de seus olhos mortos com a saliva viscosa de um fumante: V. conhecia o horror
antes mesmo de despontar da vagina de sua mãe analfabeta.
Ela
já não tremia, finalmente. Quando seu cigarro acabou, o filtro branco marcado
de batom foi lançado com desprezo numa poça d’água e, imediatamente, nossa musa
voltou a vasculhar a bolsa pequena. Era como se a vida estática a ofendesse.
Contemplar a rua, cerrar os olhos para descobrir os motoristas e suas sedes,
contentar-se com a espera – tudo isso a corroia. Como se a própria percepção de
seus batimentos cardíacos impecavelmente ritmados ou da quentura agradável de
seu hálito honesto provocassem-lhe a pior das afrontas. V. estava tentando
empurrar dois comprimidos brancos rumo ao fundo gentil de sua garganta quando
um Fiesta estacionou em sua frente.
Quatro
homens estavam no carro. De vez em quando, o que estava dirigindo levava uma
garrafa à boca sem nunca ousar encarar V.. Os outros a engoliam. Ainda
acovardados e de vidros fechados, três animais sussurravam dentro de um carro prateado
enquanto sentiam a familiar pancada de sangue preenchendo três cacetes
ansiosos. Nunca haviam feito aquilo. Quando um deles abriu o vidro e colocou o
braço pra fora num convite claro à aproximação, tudo o que V. pôde decifrar de
sua fala foi uma língua estalando, úmida, no céu de uma boca pavimentada de
menta e alcatrão. Ele corou. Logo, a besta com quem dividia o banco veio em seu
socorro. Nós quatro, ele disse.
Nunca
vi V. dizendo não.
Ela
checou o horário em seu relógio dourado, inflou o peito num exercício de
preparo e tentou, hesitante: - Duzentos. Minhas vistas alcançaram uma das
portas traseiras do carro se abrindo sem que ninguém fosse descer e V., em
silêncio e cheia de um desgosto de rasgar a cara, aconchegou-se entre os dois
homens que estavam no banco de trás.
V.
demorou a voltar.
3. Grave
disperato.
Eu
já estava indo embora quando vi o Fiesta dobrar a esquina de baixo sem fazer
questão de usar os freios. O carro passou por mim e parou alguns quarteirões à
frente. Quando a mesma porta traseira se abriu, V. foi cuspida impiedosamente.
No chão, pude vê-la parada de pernas meio abertas e olhando fixamente para cima
enquanto o carro desaparecia no vórtex da madrugada. Estava escuro, era difícil
entender se respirava, se gemia, se rezava, se chorava, se morria ou se apenas
se recompunha antes de irmos embora no mesmo ônibus. Acendi um cigarro e tomei
fôlego para descrevê-la de perto. Três tragadas. Quase toda a fumaça para
dentro dos meus pulmões e quase nenhuma para fora de mim. Nunca antes havia
andado tão devagar.
As
roupas baratas de V. estavam molhadas e sujas e rasgadas e fediam. Cigarros,
merda, sangue, cerveja, saliva, urina, não sei ao certo. Suas orelhas estavam
rasgadas e não tenciono imaginar em qual de seus possíveis orifícios os brincos
haviam se perdido. Seu pescoço estava tomado por marcas nítidas de dedos e seus
olhos outrora pequenos e bem protegidos por aquelas pálpebras pintadas agora me
olhavam inchados e mendicantes. Seus dedos dos pés se contorciam num
ensimesmamento de quem desiste da vida. Vi ausência onde antes costumava ver
dentes. Vi duas poças de sangue onde antes via joelhos. Seus cabelos eram um
emaranhado indecifrável de esperma e saliva. Cabelos de quem desistia da vida
pela terceira ou quarta vez.
Três
tiros. Ninguém pensa que vai amargar o fim da vida na rigidez impiedosa de uma
calçada suja, nem que vai sentir insetos dos quais o nome você nem sabe
passeando pelos seus membros inertes. Lamento ter morrido sem chegar perto de
entender por que aquela mulher olhava para o céu antes de morrer. Mirando o
chão, eu nunca mais me mexi.
Mina Vieira.
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