Bombay Sapphire.
Fumaça.
Gardel.
Nietzsche aos 14.
Há oito meses, A. entrava quase que diariamente às 7h na escola em que ambos dávamos aula e me cumprimentava com um sedutor abraço matinal. Ocasionalmente, demorava mais que o usual esfregando sua barba macia na minha bochecha direita e terminava por deixar minha calcinha molhada. Às 7h, de olhos ainda inchados e tomada por um pequeno mau humor, eu me permitia sentir certa excitação apenas por notar o cheiro enjoativo de creme dental que saía da boca bem desenhada de A., professor jovenzinho e cheio de aspirações revolucionárias.
Além das aspirações revolucionárias e da barba macia, reunia em si várias outras qualidades capazes de levar suas alunas – que, consequentemente, também eram ensinadas por mim - a despejar em minha direção diversos comentários sobre ele. O cabelo era o tópico mais frequente nas rodas de conversa do intervalo ou mesmo nas fofocas irritantes de meio de aula que eu tão ferozmente tentava combater. As garotas se derretiam diante dos cachos desorganizados de A. e aparentemente tão macios quanto a sua barba. Suspiravam ao vê-lo passando as mãos cheias de giz despreocupadamente em seus cabelos enquanto apoiava-se no quadro negro e falava sobre marxismo com os olhos brilhando e um charme inacreditável. Logo em segundo lugar vinha a sua irremediável cara de canalha: com dentes meio separados enfeitando um sorriso encantador, ele era capaz de levar qualquer aluna à loucura com qualquer um de seus comentários, inocentes ou não. Pois eu sabia. Sabia de cada uma das tentativas pervertidas de levar alunas de quinze ou dezesseis anos pra casa, sabia de todas as vezes em que havia sido bem sucedido, sabia de dois ou três hímens que havia mandado pro espaço, sabia de umas garotas que choravam por ele no banheiro e de umas outras que me odiavam porque conversávamos nos corredores e nos abraçávamos sempre que possível.
Ele era desgraçadamente bonito, é preciso concordar. Quando estava frio, vestia camisas claras de mangas compridas e tecido leve que se assemelhavam a pijamas e exatamente nesses dias nossos abraços tornavam-se intermináveis pra escola toda parar e comentar maldosamente que os dois professores revolucionários e adorados pelos alunos talvez estivessem tendo um caso. Mas não estávamos. Eu passava as unhas nas suas costas por baixo da camisa e ele me apertava mais pra perto pra sentir meus seios contra o seu peitoral digno de várias horas de admiração. Às vezes, eu chegava a deixar escapar pequenos gemidinhos enquanto A. passava a barba no meu rosto e o via se afastar com um sorriso safado grudado na cara. O mesmo que usava com suas alunas, eu tinha certeza. E, por isso, eu era imune ao seu charme insuportável. Afinal, tinha mais de dezoito anos e não depositava grandes esperanças em homens que costumavam comer garotinhas virgens e inexperientes. Ele, provavelmente, era muito ruim de cama. E inseguro. E egoísta. E cheio de assuntos insuportáveis e erros de português.
Aqui, espero que já tenham deduzido que nunca havíamos nos encontrado fora da escola. Nunca trocamos telefones, nossos e-mails sempre foram dotados de um profissionalismo exemplar e nossas conversas se reduziam a amenidades nada calorosas ou pessoais. Mas eu me vestia pensando nele. À noite, quando geralmente preparava as aulas do dia seguinte, pensava incessantemente no que vestir. Sabia que ele adorava as minhas saias, minhas sandálias de couro, os vestidos que marcavam discretamente a minha bunda grande, meu rosto sem maquiagem, minhas orelhas sem brincos. E eu me esforçava pra arrancar dele seus elogios sutis e os olhares indiscretos que às vezes lançava a todas as direções do meu corpo. Sorríamos quando nos encontrávamos. Aliás, provocávamos encontros casuais como dois adolescentes idiotas e às vezes eu o pegava me olhando sem disfarçar, me encarando e umedecendo os lábios num convite claro ao duelo. Mas fui capaz de manter uma distância segura de A. até setembro, mês no qual o vi parado em minha frente sem camisa, suado e ofegante.
Era feriado e eu estava sozinha, como quase sempre estava. Cansada de ler deitada no sofá de casa, cheia de um calor que me fazia tomar um banho a cada trinta páginas, decidi exalar intelectualidade num parque que ficava a poucos quarteirões da minha casa. Tomei um último banho, prendi o cabelo e andei até lá. Não me olhei no espelho antes de sair de casa, não passei um hidratante diferente em cada membro do meu corpo e muito menos perdi segundos de leitura me perfumando exageradamente. Fui, apenas. Lá, busquei uma sombra e me sentei sobre o lençol branco que havia levado pra evitar que a grama despertasse coceiras incômodas e atrapalhasse minha concentração. Com uma água de coco na mão, retomei minha leitura e por uns vinte minutos não desgrudei o olhar das páginas. Mas então ele se sentou do meu lado sem pedir licença, sem me cumprimentar, sem me dar nenhum de seus abraços costumeiros e sorriu deliciosamente ao conferir o título do livro que agora jazia sobre as minhas pernas nuas e não bronzeadas. Thoreau,é? Eu sabia que ele estava impressionado. Thoreau, professor. Respondi debochando e já me inclinando pra mais perto.
Thoreau e você de tie-dye curtinho, sem sutiã, na esquina da minha casa.
O convite estava feito. Era um dia tedioso, restavam-me apenas poucas páginas do livro pra terminar, a casa dele era ali na esquina, a minha era um pouco mais pra frente e ele estava passando as mãos nos cabelos como fazia na sala de aula. Eu mordia os lábios, me sentindo uma das suas adolescentes e, de forma inexplicável, via prazer nisso. Olhei para o peito firme de A. sem esforço algum pra simular outro interesse. Seus pelos bem distribuídos, claros, adornando a pele branca e molhada me convenciam melhor que qualquer proposta inteligente. Mas ele fingiu que não havia me convidado pra nada e em poucos segundos estávamos lá, quase recompostos, falando do Thoreau dele, do meu Nietzsche, do meu Sartre, dos meus relacionamentos kunderianos que inconscientemente eu pedia pra que fossem os dele também. Nenhum erro de português, assuntos fascinantes, um cheiro bom vindo de todas as partes do seu corpo e minhas mãos subindo e descendo por aqueles pelos, às vezes perdendo-se entre duas coxas grandes que eu mal conseguia segurar. Ele olhou pros lados duas vezes, sem parar de falar comigo, segurou minha mão direita e me indicou onde seu pau estava. Eu parei de falar e abri a boca numa expressão de surpresa, susto e excitação. Com aquele pau latejando e aquele sorriso canalha sorrindo pra mim, eu fui pra casa dele.
Trepamos em sua cama, em seu quarto rodeado de livros. Ele era, com toda a certeza do mundo, o homem nu mais bonito que eu havia visto até então. Sua beleza bruta estava presente desde os seus pés brancos até seus ombros largos e bons de apertar. A. me apertava muito, também. Enquanto me beijava com uma língua nada moderada, apertava meus braços finos com força e às vezes parava de me beijar pra assistir minha reação. Eu sempre gemia mais forte diante dessas pequenas violências. Chupava-me com uma destreza inacreditável para a sua pouca idade e eu me contorcia gemendo o seu nome enquanto ele me batia, ainda meio tímido, e apertava a minha bunda com devoção.
Mina Vieira.
Inveja.
Antes, vamos às explicações: eu estava aqui tranquila, retomando um texto antigo cheio de sexo, cigarros, drogas, calcinhas sensuais, garotas possíveis e algum rock n roll (só o de sempre) e tentando terminá-lo, quando percebo que um pedaço dele que havia escrito um tempinho atrás simplesmente desapareceu. DESAPARECEU. Escrevi e não salvei, sei lá. Fiquei louca, obviamente. Enquanto me recuperava, fui lendo umas velharias e achei o texto abaixo, escrito num momento de inacreditável ternura e dúvida. É estranho, vou avisando. Nem sou eu. Achei que nunca publicaria e corro sérios riscos de perder uns dois leitores. Mas, toma!
Minha filha foi o primeiro bebê com o qual eu, de fato, tive contato. Não que antes dela eu não gostasse de crianças, mas eu nunca antes havia achado necessário estabelecer laços com alguém que não fala, não anda e que depende de mim completamente. Portanto, ela foi o primeiro bebê que eu segurei no colo por mais de 2 minutos. E eu não sabia como fazer aquilo. Parecia tudo desajeitado, ela parecia estar caindo o tempo todo e meu colo parecia - espero que só para mim - o lugar menos confortável do mundo. Era impossível fazer aquilo certo. Ainda no hospital eu tinha que me olhar no espelho segurando aquele embrulho pra ter certeza de que parecíamos plausíveis como mãe e filha. Ainda não sei se conseguíamos. Preciso confessar que eu queria muito que ela fosse um bebê normal, e não filha de um cabeludo mal humorado e uma menina de 18 anos que não sabe trançar o próprio cabelo. Então, enquanto me esforçava pra fazê-la parecer ordinária, um bebê qualquer, eu pude me dar conta do quão perfeita ela era. Seus poros eram impecavelmente fechados, ela tinha o olhar tranquilo de quem não conhece o mundo e uma ausência linda de marcas na pele. Eu, enquanto isso, sofria os efeitos do fim da minha adolescência, dos vinhos que eu havia bebido até ali, das doses de uísque, dos cigarros fumados, das noites inconsequentes, do sol tantas vezes ignorado e da carne de porco que comia quase diariamente. Mas tentei não invejá-la. Seria estranho invejar um bebê, talvez tão estranho quanto invejar uma equação matemática. Pensava não ser capaz de amá-la mais do que a mim mesma. Quando engravidei, o mundo ainda girava ao meu redor e eu me recusei por um longo tempo a deixar o picadeiro. Agora, tudo era Alice. Os elogios do pai, meu dinheiro, as músicas que ouvíamos, os presentes criativos de amigos meio artistas, todos dela. Continuei não sentindo inveja, mesmo sem entender. Em casa, longe de todos os olhares, pude aprender a lidar com aquilo. Eu, que sempre havia sido totalmente verbal, aprendi a observar. Ela apertava meus dedos e não soltava nunca mais. Chorava sempre, me pedia muitas coisas e não falava palavra alguma. Enquanto eu amamentava, me mordia com as suas gengivas nuas e me apertava sem sequer imaginar que aquilo doía. Ela me tomava muito tempo. Por quase um ano não tive tempo algum pra cuidar de mim. Minha pele deve ter ficado ainda mais mal tratada, ganhei peso, deixei de fazer as unhas toda semana, deixei de lavar os cabelos todos os dias, passei a ter cheiro de leite materno. Era inevitável. Era matematicamente impossível ser bonita e mãe ao mesmo tempo. Depois de uns anos as coisas foram melhorando, fui me acostumando com aquela nova condição e me adaptando ao novo estilo de vida. Um dia ela cresceu e completou sete anos de idade. Quando cheguei em casa, ela estava brincando com os chapéus do pai, se enrolando nos meus xales e usando uma miniatura de calça jeans. Ela é linda. Eu podia sentir inveja, agora, mas apenas caminho até ela e a aperto, interrompendo a brincadeira.
Mina Vieira.
Relato (ou Homem)
Moro em uma cidade que se pretende grande e descolada. Bares modernos, escuros e com ar condicionado potente, prédios altos, casais inusitados se beijando freneticamente pelas esquinas e cinco sorveterias a cada quarteirão. Na minha cidade que avança lentamente rumo ao caos mora Cíntia. E Cíntia é, com o perdão da hipérbole, a mulher mais fascinante que já conheci. Ela me amava, apesar de eu achar que jamais havia merecido. Com proporções perfeitas, eu deixava que ela ocupasse minha cama três vezes por semana, às vezes mais, e a contemplava com ternura e boa dose de desejo sempre que saía para trabalhar. Proporções perfeitas! Seios brancos de mamilos delicados que eu mordiscava em reverência e logo abaixo aquela barriga lisa de quem havia comido pouco quando criança, acabando num ventre largo que às vezes parecia exagerado diante de tanta miudeza: era o corpo de Cíntia estirado em minha cama. Mas era também impressionante quando acordada, é necessário dizer. Sua memória infalível me salvava constantemente de diversos possíveis problemas e a graça com que demonstrava conhecer cada centímetro sujo dos meus infinitos labirintos mentais não me incomodava nunca. Deixava que Cíntia falasse por mim, realizasse minhas vontades, me lembrasse das minhas convicções e cavalgasse destramente sobre mim sem que eu sequer ameaçasse interrompê-la. Assim, eu vivia feliz e confortável há três anos ao lado dos 1,74m de Cíntia.
Mas, claro, houve uma noite em que ela não estava aqui para me fazer acreditar em minhas próprias convicções. Um erro fatal. Eu estava em um dos muitos bares modernos, escuros e gelados que conheço e Cíntia estava lá longe irritando o mundo com o seu equilíbrio e a sua estranha compreensão de todas as coisas, linda e ocupada. Então, decidi ser homem.
Clarissa foi andando rumo ao banheiro e, mesmo quando já estava passos distante de mim, ainda era possível sentir o seu perfume. Para já me redimir, digo que era tão nauseante quanto a sua voz. E isso quer dizer muito. Então, ela voltou e me cumprimentou cheia de uma intimidade e um interesse que há tempos eu não presenciava partindo de um corpo feminino que não fosse o de Cíntia. Pensei nela, pensei na minha Cíntia lá longe enquanto meu pau endurecia impiedosamente por uma outra que nunca seria digna de uma das minhas ereções. Logo eu, eu que havia gastado grande parte da minha adolescência convencendo a mim mesmo e aos outros de que não me excitava com clarissas, agora estava ali, ridículo, tentando esconder meu tesão por uma mulher que reunia em seu corpo pouco gracioso uns tantos motivos pelos quais eu repudiava a humanidade.
Porém, Clarissa aproximava sua boca grande da minha orelha para vencer o barulho da banda ruim e me confundia com perguntas e comentários incoerentes – mas às vezes verdadeiros – sobre Cíntia, a minha. O intervalo entre meus goles se tornava cada vez menor, até que o ato engolir minha cerveja gelada se consolidou como constância. Às vezes, a voz esganiçada e falha de Clarissa parecia dizer algo interessante e às vezes eu passava a mão em seus cabelos e pensava nos cabelos de Cíntia que sempre dançavam hipnoticamente quando ao vento. Mas não havia a mulher que eu amava em Clarissa e talvez por isso quiséssemos nos beijar. Ali. Cercado de pessoas que sentiam verdadeiro carinho por minha vida conjugal, que a respeitavam e chegavam a invejá-la. Ali, beijei Clarissa com a boca que há três anos decidi entregar a outra mulher, escolhida espontaneamente num mar infinito de possibilidades. Traí, além de Cíntia, também minha própria escolha sem sequer ponderar, minha maior convicção, o Deus cujos pés eu beijava quase todas as noites antes de dormir. Como um animal, sugava Clarissa para que todos vissem, metia minha língua meio bêbada numa boca desconhecida e preciso confessar que gostava. Uma noite, tive um corpo que não o dEla em minhas mãos e fui feliz.
No dia seguinte, negava-me a falar com Cíntia não sei se por covardia ou medo ou arrependimento ou pena. Mas me doía pensar nela e me lembrar de como eu havia tido a coragem de começar a destruir o que nós, juntos e apaixonados, construímos com afinco. O dia arrastou-se como que por tortura e, a cada ruído menos usual que me surpreendia, tinha a certeza de ter sido descoberto. Ao mesmo tempo em que fugia dos telefonemas e me esquivava do encontro inevitável, desejava ouvi-la e perceber que tudo estava bem e que o amor prevaleceria e que em poucos meses estaríamos morando juntos, comendo a mesma comida e depositando dinheiro na mesma conta. Mas minha Cíntia era feroz e não foi possível evitá-la por muito tempo. Naquela mesma noite a tive subindo no meu colo, lambendo meu pescoço e gemendo meu nome com a cara metida no travesseiro. Eu a amava com toda a minha sinceridade e devoção, mas ainda me excitava quando pensava nos seios grandes de Clarissa pouco abaixo do meu peito.
Passou. Cíntia sofre as dores da minha inconsequência até hoje, eu sei. Nunca contei a ela e pretendo nunca contar, pois isso ofenderia a serenidade que tanto sofremos para atingir, mas ela me olha doída a cada menção à Clarissa e sei que me odeia durante os seus silêncios. Arranha minhas costas de leve, encarando o teto, enquanto se questiona sobre quando é que eu vou aprender a dizer a verdade e, principalmente, sobre os meus motivos. Às vezes comete a estupidez de se achar feia e indigna. Agora, se nega a ter filhos e diz que minha porra dentro dela a incomoda, mas continua engolindo. Não sei dizer até quando. Ela, brutal, me pune sutilmente e sem de fato querer me machucar. Pretendo perdoá-la quando decidir me morder até sangrar e rezo todos os dias – às vezes com medo de ser atendido – para que ela também se permita pecar e me traia e eu talvez finalmente comece a me sentir menos pesado. Amo Cíntia verdadeiramente.
Mina Vieira.
Czechvar.
Enquanto ia levantando da mesa pra ir ao banheiro, ele me disse que meu único defeito era não gostar de vodca. E ele tinha essa mania: quando ficava bêbado, despejava umas frases que pareciam não se encaixar na conversa que estávamos tendo no momento, ou em qualquer outra, de qualquer outro casal, em qualquer outro momento. Eu, normal que sou, demorava e só as comentava quando tinha certeza de tê-las entendido, coisa que nem sempre acontecia. Mas naquela terça-feira à noite, no boteco de sempre, depois de oito cervejas caras, eu quis saber qual era a dele com o meu asco à vodca, porque eu tinha essa mania de querer saber exatamente das intenções escondidas por detrás de cada uma de suas palavras. Acreditava que não existiam coisas ditas sem propósito e que, caso existissem, eu certamente as odiaria. Eu me esforçava por ser sempre minuciosa com o que falava, porque ele era imprevisível e louco, podendo reagir a um mesmo comentário com silêncios insustentáveis pelo resto da noite ou fugas repentinas. Portanto, eu exigia que ele tivesse o mesmo cuidado ao despejar seus rompantes de sinceridade rumo ao meu corpo magro dominado pelo mais delicioso lúpulo tcheco, porque eu era louca, russa e não gostava de vodca.
Fiquei arrumando o sutiã enquanto esperava a eternidade que ele demorava no banheiro. Ele talvez estivesse fumando lá fora sem me avisar, talvez tivesse se esquecido de mim aqui no balcão e parado pra conversar com algum belo exemplar do sexo feminino que depois ele juraria não ser atraente ou sequer ter existido. Outra mania. Éramos um casal tolerante, todos diziam, mas ninguém ousava comentar sobre as longas e sofridas escaladas rumo ao nosso equilíbrio invejável.
Quando nos conhecemos, meus quinze anos tentaram me manter metros e metros afastada do universo adulto dele: eu não bebia, comia biscoitos integrais, ouvia Yes e saía de casa uma vez por mês pra trepar com desconhecidos que tremiam diante da minha bunda bem torneada de adolescente e dos meus peitinhos brancos e minúsculos. Ele vivia enchendo a cara com amigos que há tempos haviam terminado a faculdade, fumava maconha, ia a shows do Ozzy Osbourne e trepava com desconhecidas de corpos bem distantes da perfeição pelo menos duas vezes por semana. Eu queria me casar com um idiota que me amasse incondicionalmente e que perdesse a virgindade comigo, que fizesse dinheiro honesto pra pagar a escola dos três filhos que teríamos e que me escrevesse cartas de amor no dia dos namorados depois de dez ou quinze anos de casamento. Ele vinha fugindo de relacionamentos promissores há mais de dois anos, depois de ver o último deles afundando graças a meses e meses de louça suja na pia e vinha tentando, desde então, destruir seu fígado, seus pulmões, seus neurônios e seu dinheiro até finalmente morrer.
Então, eu apareci pra ele e ele apareceu pra mim. Apesar de improvável, sabíamos cantar as mesmas músicas e ele gostou da minha bunda – sempre ela - e eu gostei do cabelo dele e por duas semanas não conseguimos parar de dividir nossas histórias. Ele me ouvia contar coisas sobre meus pais mortos e ria do sotaque russo que eu tentava forçar, sem sucesso. Dirigia horas e horas me ouvindo falar enquanto pensava em um lugar decente pra matar a fome que eu sempre tinha e sempre acabava tomado por algum mau humor que eu não entendia e que ele não fazia questão de explicar. Tentava tirar minhas roupas no cinema e eu, fingindo-me de ofendida, segurava suas mãos só pra depois soltar e deixar começar tudo de novo. Desde o início, notei que sua língua era mais hábil que o normal e quase recuei quando vi seu pau ereto pela primeira vez, em nosso terceiro encontro. Não havia visto muitos paus na vida e aquele era, sem dúvidas, impressionante, do tipo que deixa a gente sem saber direito por onde começar, mas que depois acaba se mostrando delicioso e anatomicamente ideal. Tive que chupá-lo. Apesar de termos concordado em passar um tempo naquele quarto de motel só porque estava calor e queríamos ar condicionado, eu não me permitia e nem estava conseguindo negar sexo por completo. Então, como por consolo, deixei que gozasse duas vezes na minha boca.
Mesmo com todo o entusiasmo e toda a nossa boa vontade, tivemos primeiras trepadas decepcionantes e nós dois sabíamos disso. Não conseguíamos nos mexer ao mesmo tempo, eu não gozava nunca e terminávamos todas as nossas tentativas frustrados e com raiva um do outro. Pensamos em desistir, pois ele estava velho e sem paciência pra me ensinar a beber e não nos dávamos bem na cama. Eu sabia que ele não era meu idiota e que não me amaria incondicionalmente, mas antes de fugirmos acabou acontecendo. Com o carro estacionado numa rua escura e estreita, mas que cortava uma grande avenida, ele me pediu, depois de uns beijos brutos e cheios de língua, que eu me sentasse em seu pau, de costas pra ele. Obedeci. Eu gemia alto e segurava firme com as duas mãos na direção. Ele me bateu. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes. E então nos tornamos namorados.
Agora, sete anos depois, eu bebia diariamente e havíamos descoberto inúmeras semelhanças cinematográficas e ideológicas, a diferença assustadora entre nossas idades havia deixado de ser piada entre seus amigos e eles finalmente me levavam a sério. Ainda nos estapeávamos quando ele queria ouvir Neil Young a noite toda ou quando eu elogiava demais os meus quadrinhos favoritos e dizia que ele tinha que ler isso e tinha que ler aquilo, mas morávamos juntos, limpávamos a casa todos os domingos, vendíamos pão, fazíamos traduções exaustivas, trocávamos apelidos ridículos e bilhetes safados, engordávamos, tentávamos ter um filho e trepávamos maravilhosamente bem algumas vezes por semana. E ele sempre me enchia o saco com essa merda de vodca.
Nós dois passávamos todos os dias de nossas vidas alcoólatras nos dedicando às bebidas de maior qualidade. Poucos amigos aceitavam nossos convites pra sair, éramos uns chatos. Verdadeiramente apaixonados por cerveja, direcionávamos grande parte de nossa renda mensal a experimentá-las e discuti-las. Tínhamos uma paixão indestrutível por uma marca inglesa e por absolutamente todas as cervejas tchecas, que eram as mais bem lupuladas e que, na minha forma peculiar de descrever cervejas que ele entendia tão bem, exalavam cheiro de bosque lodoso quando abertas. Às vezes, porém, acabávamos cedendo e nos rendendo a outras bebidas: uísque quando estávamos prestes a trepar ou vendo filmes de faroeste na TV, vinho quando estávamos prestes a trepar e/ou quando estava frio, e ele me admirava – sem participar - enquanto eu apreciava, como homem feito, minhas doses de cachaça de quase todos os estados brasileiros que tomava quando queria ficar bêbada rapidamente. Mas não vodca. Nunca vodca. Odiávamos vodca. Eu, principalmente. Vomitei tudo o que havia dentro de mim quando tomei vodca pela primeira vez e ninguém me convenceria de que uma coisa que precisa ser misturada com outra pra ser bebida é uma boa idéia.
Então, ele veio. O desgraçado veio andando sorridente com um irritante copo de vodca na mão. Daqueles de uísque, largo, e com vodca até a metade. Era uma das manias dele atingindo níveis absurdos. Ele fazia isso com comida também. Insistia pra que eu comesse coisas que odiava desde a infância, ficava dizendo come come come come come come come come come até me deixar puta, mas eu não comia. Aí jogava a coisa que eu não queria comer bem no meio do meu prato e continuava com o come come come insuportável. Por último, pegava com o garfo e colocava bem perto da minha boca, me fazia rir e pronto, enfiava lá dentro. E como eu o odiava nesses momentos. Chegava a gritar de ódio, às vezes chorava e explicava pra ele que aquilo era de uma maldade sem tamanho, mas não adiantava. Na semana seguinte lá estava ele tentando me fazer comer seus vegetais estranhos ou suas combinações que tanto me assustavam.
Você é russa, ele disse batendo o copo na mesa e fazendo o líquido transparente saltar. Tem que aprender a tomar como o seu pai tomava, todos os dias antes das refeições, sem frescura. Meus olhos se encheram d’água e eu implorei mentalmente para que ele não fizesse aquilo, pra que se sentasse, pedisse mais uma Fuller e continuasse a ser o cara legal com o qual eu havia escolhido morar. Mas não, ele já estava segurando o copo e a minha mão ao mesmo tempo. Eu o odiava. E por que ele não tomava? Por que é que ele não se entregava ao maravilhoso mundo russo da vodca sem gelo? Eu havia nascido lá e botado o pé na Rússia apenas duas vezes quando ainda era criança, mas nunca mais, não nutria nenhuma simpatia por aquele lugar ou pelos meus familiares russos e estava pouco me fodendo pra tradição ou para o que meu pai morto fazia todos dias. E ele insistia. Bebe bebe bebe bebe bebe bebe tem que beber bebe bebe bebe. Trinta segundos de tortura absoluta.
Você é um merda, eu falei. Você é um merda covarde, bêbado e idiota. Peguei minha bolsa, as chaves do carro em cima da mesa e fui embora. Voltei pra casa com o carro dele e sentindo imensa dificuldade pra dirigir, pois ele nunca havia me deixado dirigir bêbada. Ele chegou em casa uns vinte minutos depois, de taxi. Me deu um beijo na boca, me mostrou três lindas garrafas verdes que logo depois colocou na geladeira e perguntou se podia me levar pra cama. Acabei deixando.
Mina Vieira.