terça-feira, 2 de março de 2010

Particular.


Estava muito calor no dia em que conheci Tânia. Eu odiava o calor assim como odiava o fato de ter que acordar todos os dias às 5h45 da manhã, pisar no cinzeiro cheio que sempre ficava ao lado da cama e olhar pra minha cara abatida com aquelas duas olheiras bem roxas que me acompanhavam desde a adolescência. Odiava fumar. Lembro que comecei com essa merda depois de perceber que todos os namorados da Audrey Hepburn fumavam... eu com os meus quinze anos ficava escondido no banheiro e fumava para que ela talvez se materializasse na minha frente com aqueles lindos óculos escuros e meias pretas cantando com aquele biquinho inconfundível e me chamando com aquele dedinho pequeno naquela mãozinha deliciosa. Nunca aconteceu. Mais tarde deixei de roubar os cigarros da gaveta do meu pai e passei a fumar os meus próprios enquanto fingia que trabalhava ou assistia o canal de compras na TV. Agora tenho dentes amarelos e perco o sono durante a noite com medo de não ter o que fumar de manhã.


Minha saúde toda andava uma merda, na verdade. Eu nunca me exercitava, perdia o fôlego até batendo punheta, tinha preguiça de tomar banho e meu telefone não tocava. Tânia veio quando meu computador de 1995 resolveu não ligar, desgraçado. Eu estava afundado no sofá num domingo à noite esperando o sono enquanto assistia um documentário interessantíssimo sobre auroras boreais. Aquilo, de alguma forma, me acendeu. Queria ir pro pólo norte assistir aquela coisa acontecendo, mas acabei me contentando em correr pela casa para beber minha dose diária de uísque antes que as idéias fossem todas embora. Durante o dia eu trabalhava nos correios e à noite eu escrevia. As auroras boreais me fizeram aprender a escrever. Nesta noite eu fui capaz de criar animalescamente, meio trepando com o teclado. Foi delicioso, a melhor transa da minha vida pré-Tânia. Depois fiquei exausto e fui me deitar. Consegui me masturbar sem perder a respiração completamente e eu era o homem mais feliz do mundo. Tive meu primeiro orgasmo que não exigiu um cigarro e no dia seguinte meu fiel computador de 1995 resolveu não ligar. Poucas horas depois ela apareceu, mas por enquanto eu era de novo um merda viciado com um emprego ruim e um apartamento cheio de garrafas de vodca vazias.

Fui tomar café da manhã na padaria, já que a quantidade de louça que habitava minha pia tornava impossível qualquer manobra culinária. Eu mal conseguia ver meu microondas no meio de toda aquela sujeira e minha geladeira só servia mesmo pra abrigar minhas cervejas queridas. Três andares cheios de delícias belgas, tchecas, inglesas, holandesas e alemãs que me fizeram ir matar a fome na rua. Eu andava sob aquele sol filho da puta pensando que talvez estivesse na hora de comprar alguma comida, contratar alguém pra limpar aquela bagunça e finalmente usar o cômodo das garrafas vazias pra alguma coisa mais útil como uma biblioteca ou um escritório. Mas meu único par de meias sociais fazia meus pés suarem dentro dos sapatos de couro sintético e interrompia qualquer pensamento longo demais. Eu precisava cortar o cabelo e meu computador havia morrido com todos os meus textos dentro dele. Eles estavam prontos pra entrar em decomposição e eu nunca mais os veria.

Mil cabos de aço puxaram meu pescoço pra esquerda. Tânia estava atravessando a rua e parecia vir na minha direção. Minha Audrey. Aquele rostinho bem pequeno e bem meigo, aquele vestido rosa sem decote, aqueles passinhos tímidos e aqueles olhos enormes que me engoliam e entendiam o inferno que havia sido a minha vida até então. Esqueci do misto quente que eu queria comer e só pensava naquelas duas mãozinhas magras segurando meu pau e naqueles olhos perturbadores me olhando de baixo e implorando pra eu gozar. Queria andar até ela e pedir pra ser curado imediatamente, levá-la para morar comigo, queria comprar aquela padaria toda e dar de presente a ela dentro de um embrulho lilás, queria que ela me fizesse parar de fumar. Ela veio dando passinhos que pareciam não prestar pra nada e tenho certeza que demorou uma eternidade pra chegar. Tânia tinha que ser a minha salvação. Ela tinha que ser professora de ioga ou pilates ou educação física, tinha que fazer chás pra mim, me desintoxicar, tinha que me obrigar a acordar mais cedo pra respirar o ar limpo e fresco que Deus reserva pros que acordam muito cedo.

Ela era toda pequenininha. Eu ria das calcinhas minúsculas que encontrava penduradas na torneira do chuveiro, ria dos seus sapatos 34 e ria quando ela usava as duas mãos para me masturbar. Mas Tânia não me curou. Na verdade, ela sempre preparava uma dose de uísque pra tomar no banho e sempre bebia goles de alguma coisa enquanto trepávamos. Parava o sexo na metade pra aumentar o volume das músicas barulhentas que ouvia e voltava pra cama pretendendo continuar exatamente de onde havia parado. Era fascinante e não gostava de cigarros. Tinha uma série de amigos gays que viviam entrando e saindo da minha casa, vendo minhas cuecas no varal e lavando o pau na pia do meu banheiro. Sujava minha cama de maconha e deixava o esmalte nas unhas até que saísse sozinho. Não lavava minha louça. Nem a dela, na verdade. Ela falava de outros homens enquanto estava dormindo e quando bebia demais achava que entendia de política. Tinha espinhas na bunda quando estava de TPM e me fazia sair pra comprar absorventes no meio da noite. Uma desgraça. Eu daria meus três andares de cerveja praquela mulher que não era nem de longe o que deveria ser.

Mina Vieira.

3 comentários:

crap disse...

no começo achei essa coisa de audrey muito gay. mas talvez seja porque eu nunca me interessei por ela, não sei. gostei do ponto de vista masculino.

"Esqueci do misto quente que eu queria comer e só pensava naquelas duas mãozinhas magras segurando meu pau e naqueles olhos perturbadores me olhando de baixo e implorando pra eu gozar."

poxa, né?

o texto todo é muito bom. gosto de pontos de vista masculinos porque... bem... é o lado da moeda que eu conheço e me aventuro.

me desconcentrei no comentario, então acho que é tudo.

Chantal Garrett disse...

'Lembro que comecei com essa merda depois de perceber que todos os namorados da Audrey Hepburn fumavam'

Gente, lembrei da cena da festa no ap da Audrey, aquela fumaceira, um fuá. hahaha

Blog fantástico!

Unknown disse...

Muito bom!
Adorei o trecho "e meu telefone nao tocava"
Valorizo mto essa maneira de dizer as coisas, algo tipo "e tomei o café que eu mesmo preparei"

Prefiro narrativas sem tantos vocabulários chulos, mas entendo se enquadram no personagem. Descrevem-no em segundo plano.

Tive a impressão de que faltou um pedaço entre o penúltimo e o último parágrafo, percebe-se que foi proposital, mas não me agradou.

No mais, gostei muito!

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